Por um entendimento entre Democratas e Humanistas

O papel das forças democráticas implica a defesa intransigente dos interesses da população, o que significa o reconhecimento sem arestas das instituições da República.

Mas não é difícil constatar a ambiguidade do comportamento de alguns setores se reivindicando do campo progressista quando recorrem à doutrina nacionalista, em período marcado pela globalização, para justificar seus equívocos e crimes. Não há como deixar de lembrar aqui a frase do escritor Samuel Johnson: “O nacionalismo é o último refúgio dos calhordas”. Proferida no século XVIII, ela parece manter toda sua atualidade. Já foi dito por um grande estrategista político do século XX: “Não pintemos o nacionalismo de vermelho”.

Para algumas instâncias políticas ocorre, visivelmente, um atrito entre o plano nacional e a questão democrática. A História ensina. Vejamos o caso do governo populista de Getúlio Vargas. Ele subordina a Democracia a um propalado nacionalismo modernizador. Ocorre que a modernização desejada por ele se fazia em detrimento dos direitos humanos. Modernização com recurso sistemático a torturas e carta branca para a polícia política de Filinto Müller não dá. Astrojildo Pereira percebeu isso com muita acuidade à época, valorizando a Democracia entre nós desde os primórdios do movimento dos trabalhadores, nas primeiras décadas do século XX.

Um país não se compõe apenas de bandeira e hino. Tem povo dentro dele. E esse povo não pode ser reprimido sob pretexto de preservar os interesses nacionais. A redução da política à lógica do chamado “nós contra eles” conduz a considerar os atores sociais como inimigos e não adversários. Nunca é demais lembrar que o próprio da atividade política é a negociação: a destruição ou a eliminação do outro pertence ao raciocínio e ao domínio dos marginais.

A mediocridade e a perversidade podem ser significativas e andar de mãos dadas. Já vimos esse filme durante a ascensão do fascismo na Europa. Hoje, vem se formando um novo Eixo nazifascista, tendo a Democracia como inimiga.

O campo democrático está diante de uma verdadeira encruzilhada. Ou assume de vez os valores e as conquistas do processo civilizatório ou simplesmente desaparece de cena. Ou combate a barbárie ou sucumbe. Não há meio-termo. Dos enormes desafios que o Campo Democrático têm pela frente – os quais passam tanto pela compreensão de que um novo mundo do trabalho vem se formando diante de nós quanto pela necessária ampliação das lutas pela cidadania, sem esquecer dos compromissos a assumir com a defesa do meio ambiente -, a incorporação definitiva da Democracia ao ideário progressista talvez seja aquele de maior complexidade. Houve, em muitos momentos, um corte entre o ideário das organizações políticas e sindicais dos trabalhadores e a Democracia, essa é a verdade. Não podemos mais adiar essa decisão, a retomada do fio da meada. Alguns são mais democratas no plano político; outros, no terreno social e econômico. Mas há um chão democrático comum, formado pelo Humanismo, pela defesa da ética e pela formação de uma ampla frente política. A luta é longa e só pode ser conduzida de forma consensual. Em tempo: por Humanismo eu entendo uma sociedade não fraturada, sem exploração, alienação ou opressão de nenhum tipo. Somente assim o homem se reencontra ou se reconcilia com ele mesmo.

A linha de demarcação política se dá entre Civilização e Barbárie. O que não podemos admitir é que haja tortura de direita ou tortura de esquerda. O que há é tortura e ponto final. O que não podemos admitir ainda é que haja corrupção de direita e corrupção de esquerda. O que há é corrupção e ponto final. Em outras palavras, a corrupção está para a economia como a tortura para a política: mata.

Durante muitos anos deixamos que aventureiros e demais integrantes de toda uma escória, à maneira das hordas fascistas, posassem de defensores do povo. Eles não representam coisa alguma, a não ser eles mesmos. O populismo é, muitas vezes, o fascismo que não ousa dizer o nome.

Não podemos continuar nessa marcha. Não temos como manter por mais tempo esse corte entre Justiça Social e Democracia, como algumas esferas políticas vêm praticando. Ao contrário, é preciso aproximar esses dois componentes essenciais da vida em sociedade. Temos que entender que a Democracia é uma totalidade, possuindo ao mesmo tempo uma dimensão social, econômica, política, ambiental, cultural e educacional. A própria Frente Ampla não pode se limitar mais à defesa da Democracia institucional. Evidentemente, esta defesa continua sendo fundamental, mas, a rigor, é preciso ir além da Frente Ampla formulada na batalha contra o nazifascismo: urge aplicá-la a todos os setores da vida. E entender de uma vez por todas que contradição não se dá entre Estado e Mercado e, isto sim, entre capital e interesse social. E que a socialização tem que se dar pela própria sociedade e não pelo Estado forçosamente. Essas são correções inevitáveis, alterando certos rumos nossos. O trabalho por conta própria e as cooperativas de trabalhadores abrem novos espaços, ditando aspectos diferenciados para a atividade econômica.

Não há mais muito tempo a perder. Urge organizar um novo projeto político e um novo operador político.

Precisamos, em meio a essa crise sem precedentes dos nossos ideais de justiça social e de Democracia, agarrar a realidade pelos cabelos e recuperar os laços que ainda nos ligam à cultura libertária. O movimento anarquista correspondeu a uma fase da organização da indústria, de corte mais artesanal. O movimento comunista da III Internacional representava o chão da fábrica, indicando uma separação maior entre capital e trabalho. Hoje, estamos diante de um processo de outro tipo, com a entrada em cena da automação, da robótica e da inteligência artificial. Que política armar a partir daí é o x da questão. Esse é o ponto de partida. Vamos concentrar esforços nisso. O sonho não acabou, mas necessita de ajustes consideráveis.

Se a primeira Revolução Industrial, a que teve início na Inglaterra em 1780, criou as bases técnicas para a superação do modo de produção escravista, esta última, iniciada na virada do século XX para o seguinte, está criando as bases técnicas para a superação, por seu turno, do modo de produção capitalista. Somente os reacionários não entendem isso. Em outubro de 1917, na velha Rússia, havia as condições políticas para as mudanças, mas não existiam as condições técnicas. Hoje é o contrário: temos as condições técnicas, mas perdemos, momentaneamente, as condições políticas. Tudo indica que haverá um choque entre as forças produtivas, que não recuam historicamente, e as forças reprodutivas, isto é, o número de pessoas formado no bojo da Revolução Industrial anterior. Esta é outra dificuldade que temos de encarar.

Cabe a nós, humanistas contemporâneos, reinventar a Democracia, democratizando o seu sistema atual de representação. Até para melhor defendê-la das forças autoritárias e totalitárias.

Chega de polarizações. Afastemos de nós os corruptos e aventureiros, aqueles que não possuem programa ou propostas sequer. O Campo Democrático não é o lugar deles.

Por um entendimento histórico entre os humanistas, tendo por base o legado da própria Civilização, no que ela tem de melhor: ou seja, a Justiça Social, a Ética e a Democracia. (Blog Democracia Política e novo Reformismo – 01/09/2024)

Ivan Alves Filho é historiador

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