Cárceres que pareciam eternos, como o Aljube, a depender de engenho e arte, podem se tornar ocasião de catarse e, também, de esperança
Edifício maciço que ladeia a milenar Sé Patriarcal de Lisboa, o Aljube é um destes lugares que desafiaram os séculos, mantendo-se absurdamente fiel à soturna vocação de abrigar tortura e morte. Uma modesta placa na fachada adverte que do silêncio das suas gavetas ou curros, celas obscenamente exíguas, bem como dos corpos desfigurados pela polícia política iria florir abril há exatos 50 anos. Cravos vermelhos e versos admiráveis pelas paredes redimem o ambiente, que agora, como museu e lugar de memória, evoca não só o ilimitado sofrimento humano, mas também o anseio de liberdade que brota de cada chaga e cada grito de dor.
A revolução quase sem sangue de 25 de abril não iria mudar só Portugal. Na conhecida visão de Samuel Huntington, ali teve início uma nova onda forte de democratização – uma onda que se espalharia na direção do Brasil e da América Latina, bem como dos países do Leste Europeu, antes do atual refluxo “desde-mocratizador”. O caso português, naturalmente, teve características específicas. Tratava-se, antes de mais nada, de estancar a sangria provocada pela guerra colonial tardia de um regime contemporâneo dos fascismos clássicos – e ele mesmo fascista à sua maneira.
O grupo de oficiais médios envolvidos na guerra – reunidos no Movimento das Forças Armadas – apresentou ao país um programa constituído de lema simples e forte: descolonizar, democratizar, desenvolver. A insurreição militar acabaria por deflagrar um agitado processo de transformações sociais e políticas que ainda hoje têm valor paradigmático. As Hipóteses de Abril – termo cunhado por Eduardo Prado Coelho à semelhança das famosas Teses de Abril formuladas por Lenin pouco antes da revolução bolchevique – logo implicariam basicamente a via revolucionária, sob o signo de assembleias e estatizações, e a via reformista, preconizada por sociais-democracias que então regulavam com êxito os capitalismos nacionais.
O duro confronto entre estas duas hipóteses de mudança encarnou-se nas figuras do comunista Álvaro Cunhal e do socialista Mário Soares, como que a repetir situações críticas anteriores na Europa e fora dela, opondo forças rivais da esquerda, suas diferentes alianças e visões de futuro. Façamos um pulo arriscado entre contextos díspares. Na Rússia, em 1918, a dissolução da Constituinte pelos bolcheviques representaria um marco na configuração do regime ditatorial a seguir implantado a ferro e fogo. Em Portugal, impensável uma solução dessa natureza. Em eleições livres e justas para a Constituinte de 1975, os socialistas recolheram cerca de 38% dos votos, ante 12% dos comunistas, sem falar no terço de eleitores, ou pouco mais, que preferiu um dos dois partidos moderados e conservadores.
Ao contrário do que supuseram os mais afoitos, nem por isso se deteve a profunda renovação política, econômica e cultural, rumo a um Estado de bem-estar suportado pelas possibilidades do país, de resto plenamente integrado nos anos 1980 à Comunidade Europeia.
O voto democrático tem consequências de toda ordem, como o comprovam, entre outros feitos, um sistema nacional de saúde e uma rede educacional pública de qualidade. Um estável centro político, ocupado alternativamente pela esquerda socialista e por um partido de centro-direita, nominalmente socialdemocrata, deu razoável conta de crises e vicissitudes das últimas cinco décadas. À esquerda, porém, ficaram as marcas do conflito inaugural: só em 2015, os comunistas e um mais recente Bloco de Esquerda entraram na área de governo com os socialistas. Não por acaso, a instável aliança de uma legislatura recebeu na pia batismal um nome surpreendente, a “geringonça”.
Hoje podemos compreender que a democracia, por “ser viagem, e não destino”, como dizem as praças deste abril, supõe mobilização permanente em sua defesa. Dispensável aqui falar da mudança epocal que perpassa nossas sociedades, bem como o correspondente mal-estar generalizado que ela implica. Na política emergem forças francamente subversivas, em geral de extrema direita, cuja meta é a destruição daquele centro que, regulando institucionalmente a luta social, confere estabilidade e define o terreno comum em que duelam adversários mutuamente legitimados. Como em tantas outras partes, também em Portugal um aspecto crucial é saber se a direita constitucional cruzará a fronteira que a separa daquelas forças da subversão, constituindo um bloco não exatamente conservador, mas reacionário, avesso às conquistas individuais e coletivas que assinalaram todo este tempo de vida em liberdade.
Não faltam analogias com a época dos velhos fascismos, entre os quais o Estado Novo salazarista, e com o cerco à democracia liberal que estabeleceram, simulando substituí-la com regimes alegadamente menos individualistas e mais orgânicos. Contudo, analogias são meras aproximações e não traçam o rumo inexorável das coisas. Cárceres que pareciam eternos, como o Aljube, a depender de engenho e arte, podem se tornar ocasião de catarse e, também, de esperança. (O Estado de S. Paulo – 28/04/2024)
Luiz Sérgio Henriques, tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das obras de Gramsci no Brasil