O dilema da resiliência urbana

Havendo vontade política, mobilização e engajamento coletivo é possível mudar a rota e abrir caminho para formas de vida menos agressivas

É espantoso saber que uma em cada três cidades do País está desprevenida contra desastres climáticos. Milhões de pessoas, a qualquer momento, podem ser atingidas pela crise ambiental que, a esta altura, já deveria ser objeto de amplo conhecimento e de múltiplas providências. Não há negacionismo que possa ocultar o problema, nem à custa de desinformação em massa.

O tema reverbera as tragédias ambientais dos últimos anos, com particular destaque para a catástrofe que arrasou diversas cidades no Rio Grande do Sul durante o mês de maio. O Vale do Taquari já sofrera enchentes violentas no ano passado. A capital do Estado, Porto Alegre, viu pedaços inteiros da área urbana submergirem nas águas inclementes. Outras cidades sumiram do mapa, deixando um rastro de desgraças e sofrimento. Vidas perdidas, gente desabrigada, escolas e hospitais destruídos, prejuízos econômicos incalculáveis. O tranco foi tão forte que, no mínimo, deveria fazer com que parássemos para pensar.

É escandaloso que, em uma época que exibe tão vistosamente alterações significativas no clima da Terra, com desdobramentos ambientais evidentes (calor, chuvas torrenciais, desmatamento, secas, ecossistemas desequilibrados), ainda não tenha encorpado a consciência de que precisamos mudar de rota. A ideia de cidades sustentáveis circula há tempo, mas poucas comunidades conseguiram avançar em direção a elas. Além do mais, a ideia foi apropriada pelo capital imobiliário e ficou confusa.

No Brasil, sempre na rabeira de tantas coisas, fala-se muito em sustentabilidade, mas não se sabe bem do que se está a falar. A crise profunda e o uso abusivo da fizeram com que muitos digam que a sustentabilidade é um sonho numa noite de otimismo exagerado. A hora, agora, é de resistir e recuperar. O fato é que não há políticas voltadas para proteger cidades e ecossistemas. O País está exposto, desguarnecido.

O capitalismo avassalador, o consumismo, os deslocamentos constantes, a poluição, a queima indiscriminada de carbono, o desmatamento abusivo, a destruição da diversidade no reino vegetal e animal, a pesca predatória, a fúria com que se constroem arranha-céus nas cidades formam um bólido tóxico de efeito destrutivo. Demonstram a incapacidade de se estabelecer uma relação minimamente harmoniosa com a natureza.

Muitos ecologistas, meteorologistas, urbanistas e ambientalistas acreditam que ainda há tempo para a adoção de medidas cautelares e de recuperação do que já se perdeu. Havendo vontade política, mobilização e engajamento coletivo é possível mudar a rota e abrir caminho para formas de vida menos agressivas. No curto prazo, porém, as sirenes soam estridentes: preparemo-nos para novos desastres ambientais, que tenderão a ser cada vez mais graves. Eles virão não só porque continuamos a emitir gases de efeito estufa, como também porque estamos pagando o preço por termos emitidos toneladas deles ao longo das últimas décadas.

Pensar em cidades resilientes não pode ser um capricho intelectual. É tema estratégico, que merece atenção de todos. Políticas urbanas podem ser preventivas, preparar as cidades para o que virá e cuidar do que já se tem. Calçadas esburacadas e impermeáveis são tão perigosas quanto habitações irregulares nas encostas de morros ou em áreas que circundam rios e lagos. Ocorre o mesmo com as falhas na avaliação do impacto ambiental de obras tidas como “imprescindíveis”.

Aglomerações urbanas resilientes têm políticas adequadas para respeitar o modo de ser de cada natureza e monitorar a desorganização ecológica, antecipando enchentes, secas, temperaturas elevadas. A perda de biodiversidade vegetal e animal, o esgotamento de recursos naturais não renováveis, a poluição da água, do ar, dos solos são fatos que conspiram contra a reprodução da vida no planeta.

Cidades resilientes procuram soluções criativas para mitigar acidentes ambientais. Muitas vezes trata-se somente de empregar boas e velhas práticas (paralelepípedos, calçadas permeáveis, diques). Valorizando-se os saberes comunitários, respeitando-se traçados originários e incrementando a vegetação nativa, por exemplo, pode-se alcançar melhores condições de vida, moradia, lazer.

Boas políticas urbanas também incluem capacidade de resposta e estratégias de reconstrução, de acolhimento dos desabrigados, de remontagem dos equipamentos públicos destruídos. Algo está sendo feito no day after da tragédia que assola o Sul, mas muitas providências já poderiam ter sido tomadas e não foram. O Brasil está atrasado, não temos políticas e diretrizes nem para atenuar os efeitos do desequilíbrio ecológico nem para nos adaptarmos a ele. O País está voltado para o crescimento econômico a qualquer preço, sem transição energética. Não vai dar certo.

Que as vidas desperdiçadas, o sofrimento e os prejuízos materiais e imateriais trazidos pelas chuvas de maio ao menos nos ajudem a levar a sério os riscos climáticos e ambientais. Ou nos adaptamos ao que está em mudança acelerada, ou corremos o risco de uma escalada incontornável de tragédias. (O Estado de S. Paulo – 25/05/2024)

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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