O nazifascismo começa a levantar novamente a cabeça no mundo. O noticiário internacional indica que a formação de um novo Eixo é, hoje, uma possibilidade concreta. Ela passa pelo fortalecimento da extrema-direita na Europa, isto é, em países como Portugal, França, Suécia, Holanda, Alemanha, Romênia, Hungria e Itália. E, também, pela escalada expansionista cada vez mais agressiva implementada pelo governo de Vladimir Putin, defensor de uma propalada “limpeza étnica” na Ucrânia. E, como se tudo isso não bastasse, temos as constantes ameaças golpistas e loas ao Terceiro Reich de Adolf Hitler por parte de Donald Trump. Uma eventual vitória desse aventureiro norte-americano nas eleições de outubro de 2024 poderá ter consequências gravíssimas para todos nós. Uma delas é a criação de uma situação caótica. Somália, El Salvador, Haiti e vários outros países, em diversas regiões do mundo, já vivem isso. O próprio Adolf Hitler foi representante de uma escória, de um lumpesinato que explorou o caos. O fascismo se vale de situações onde a democracia perdeu a iniciativa política e a capacidade de dar respostas efetivas às inquietações das pessoas. Antonio Gramsci alertou para isso, ao analisar a subida de Mussolini ao poder na Itália. Se ficarmos entre o caos e a ditadura, o povo prefere uma ordem, ainda que injusta, disse o revolucionário italiano em síntese. As posturas terroristas dos governos atuais do Irã, de Israel e da Venezuela, endossadas igualmente pelo Hamas, tornam o quadro mundial mais tormentoso ainda.
E há um agravante nisso tudo: não contamos mais com a União Soviética, cuja resistência ao nazismo se deu ao preço de 20 milhões de vidas. Pior: preocupa igualmente o fato de a experiência liberal, que pauta há dezenas de anos a política interna dos Estados Unidos, se encontrar hoje por um fio. A invasão do Capitólio não se deu por um acaso. O surgimento da China no cenário internacional, com seu modelo capitalista autoritário, é uma incógnita nesse tabuleiro. Ao que tudo indica, a China poderá manter um posicionamento semelhante àquele dos Estados Unidos até decidir entrar no conflito mundial em 1942.
Tudo isso pode configurar uma situação pior do que aquela que vivemos em 1939, quando foi dada a partida para a Segunda Guerra Mundial.
Diante deste quadro tão inquietante, qual a nossa maior dificuldade? A união em torno da defesa dos valores da Civilização contra a Barbárie. Vale dizer, acredito que seja necessário, mais do que nunca, montar uma Frente Ampla semelhante àquela que o dirigente revolucionário búlgaro Georgi Dimitrov costurou após a ascensão do hitlerismo, reunindo liberais, social-democratas e marxistas sob uma plataforma democrática comum. Nisso, seguiu e mesmo aprofundou os passos de Vladimir Lenin, que propôs uma aliança com a social-democracia, já em 1921, preocupado com o avanço do fascismo. O mundo precisa disso e rápido. Há setores mais conservadores na política, outros mais avançados. Como há setores mais conservadores no tocante às decisões econômicas e tomadas de posição no plano social e outros mais avançados nesses dois planos. Mas um terreno democrático comum pode e deve ser explorado. Vamos ao que nos une desde já. E essa união é ditada pelo Humanismo.
O Campo Democrático encarna, a meu juízo, o que os valores da Civilização produziram de melhor até aqui. Ou seja, a noção de Justiça Social, a defesa dos Direitos Humanos e da Democracia, assim como a afirmação do indivíduo frente à onipotência do Estado. Este é o terreno no qual temos de lutar sempre; pontos de partida absolutamente inegociáveis.
Isto posto, convém destacar, com Cristovam Buarque, que essa “extrema-direita é produto da democracia: o eleitor que antes buscava ampliar direitos sociais, agora (…) busca manter privilégios contra estrangeiros geográficos, geracionais ou minoritários”.
O que fazer, então? De um lado, é preciso mergulhar sem preconceito no exame das profundas mudanças em curso no mundo do trabalho e das chamadas forças produtivas, da tecnologia, e a partir daí criar bases sólidas para a construção de uma política para os trabalhadores presentes nessa nova cena social. Se o movimento anarquista correspondeu a uma fase mais artesanal da indústria e o movimento comunista da Terceira Internacional a um período de dominância da indústria pesada, é imperativo encontrarmos uma forma de organização que se coaduna com os tempos da automação, da robotização, do empreendedorismo e do trabalho por conta própria. Entender as novas pautas, equacionando com propriedade as demandas das chamadas minorias, é igualmente fundamental. Da questão ambiental à luta pela paz, dos embates contra a corrupção e os desvios do dinheiro público, inúmeras são as nossas tarefas. Sem esquecer o quão importante significa repensar o papel das forças do mercado, afastando de vez do nosso pensamento falsas dicotomias como Estado ou Mercado e, ainda, Empresa Estatal ou Empresa Privada. O mercado é um dado da economia, com presença em várias fases históricas. O mercado dominado pelo capital se dá em determinado momento da História. É preciso repensá-lo em sua fase atual.
Precisamos atentar, aí sim, para a dimensão pública da gestão econômica. Durante a sua brilhante campanha presidencial de 1989, Roberto Freire levantou, em nome do PCB, a bandeira da luta contra a privatização do Estado. Nem tudo que é estatal se confunde com o público. Como nem tudo que é privado atenta contra o impulso coletivo. Karl Marx fazia até uma distinção entre propriedade formal e propriedade informal. O papel aceita tudo e o que define ou desempata, na verdade, é a prática social. O confronto – e aqui se encontra o X da questão –se dá entre o capital e o interesse social. Uma ONG, por exemplo, é uma entidade privada, mas pode possuir uma indisfarçável função pública. O mesmo podemos dizer das cooperativas de trabalhadores e de crédito. E, de outra parte, o empenho em manter uma determinada empresa estatal pode simplesmente significar uma tentativa de forjar um cabide de emprego, um “puxadinho” para um partido político corrupto (e um partido político é uma entidade privada, por sinal…). A empresa estatal é uma propriedade coletiva dos capitalistas e não uma antessala do socialismo. Em outras palavras: estatização não é sinônimo de socialização, como propriedade privada tampouco é sinônimo de propriedade de um indivíduo apenas, de um homem só. Que isso fique bem claro.
A História ensina: o que ocorreu durante o processo da Revolução Russa foi uma potencialização do regime absolutista de poder, construído ademais sob um arcabouço material pouco desenvolvido ou um desenvolvimento ainda rudimentar das forças produtivas. A unidade produtiva, isto é, a fábrica surgida da primeira Revolução Industrial, continuou sendo a referência na Rússia Soviética, na ausência de uma base material própria e que correspondesse a novas relações de produção que se buscava criar no topo. Não se trata, contudo, de constatar apenas um desenvolvimento quantitativo, ou seja, verificar a existência de um grau maior ou menor de desenvolvimento das forças produtivas, mas, isto sim, de viabilizar a criação de uma nova base material, de uma unidade produtiva historicamente nova. Senão vejamos. O modo de produção feudal teve seu símbolo, sua base própria: o moinho. O modo de produção capitalista também: a unidade fabril. Mas…e o socialismo real? Simplesmente herdou a base anterior.
Nada dá certo quando o desenvolvimento das forças produtivas caminha em uma direção e as relações de produção apontam para outra. Na Rússia Soviética, a mais-valia era desviada para o Estado, a forma de existência social da força de trabalho – que compõe o núcleo de um determinado modo de produção – seguia com base no trabalho assalariado.
O drama todo pode ser resumido da seguinte forma: em 1917, havia as condições políticas, mas não as materiais para a tomada do poder e edificação posterior do chamado socialismo real. O próprio Lenin reconheceu isso, na proclamação que fez no dia 6 de novembro ao povo russo. Acontece que ele acreditava que a Revolução iria se espalhar para outras áreas da Europa, muito particularmente que ela se sairia vitoriosa na Alemanha. Era apenas uma questão de tempo. Tanto que, durante anos, a língua oficial da Internacional Comunista foi o idioma alemão. Mas não foi bem assim. Hoje, de certa forma, o drama se inverteu: perdemos, ao menos momentaneamente, as condições políticas para reverter o capitalismo, mas desenvolvemos, mais do que nunca, a base material que pode possibilitar romper com este mesmo sistema, assentada na robotização, na automação e na inteligência artificial. Antes tínhamos reunido as condições políticas, mas não desenvolvemos as condições materiais; hoje, desenvolvemos as condições materiais, mas perdemos as condições políticas. Enquanto essa adequação não se completar, patinamos no limo. Esta, a meu juízo, a razão do impasse atual. Afinal, o próprio modo de produção capitalista não pode levar até às últimas consequências a lógica da automação, que é aquela do predomínio do capital constante sobre o capital varíavel, do maquinário sobre o trabalho humano a rigor. As condições materiais, técnicas, para a superação da sociedade de classes estão dadas. Faltam as condições sociais e políticas.
E podemos fazer ainda outras observações sobre o momento atual. Por exemplo, a entrada em cena de novas tecnologias – o que é irreversível – precisa ser muito bem calculada. Por uma razão simples: essas novas forças produtivas se desenvolvem em um cenário onde as forças reprodutivas, ou seja, o estoque democrático presente, é aquele de uma outra fase do capitalismo, onde havia necessidade ainda de recorrer a um volume mais expressivo de força de trabalho. Se antes havia uma transferência para a máquina de parte da atividade muscular do homem – e isso inviabilizaria historicamente o modo de produção escravista –, hoje uma parte da própria capacidade de inteligência humana é transferida para ela – e isso começa a inviabilizar o próprio modo de produção capitalista. Mais-valia em cima de robô é meio complicado de ocorrer.
Mais: não podemos perder de vista que a sociedade civil é maior do que o Estado. Analisando a Comuna de Paris de 1871, Karl Marx definiu este grandioso episódio político como o triunfo da sociedade sobre o Estado. A subordinação do Estado à sociedade civil deveria ser um dos nossos mais caros objetivos. Muitas vezes, operamos no sentido inverso: partimos do Estado para teoricamente transformar a sociedade. Mas a vida demonstrou que a palavra final é da sociedade. Escrevi recentemente: “Sepé Tiaraju, símbolo da luta dos guarani e dos jesuítas por um mundo sem exploração, não esteve no Estado. Zumbi, referência máxima do Quilombo dos Palmares, tampouco esteve no Estado. Tiradentes, sacrificado nos embates pela Independência do Brasil, também não alcançou o Estado. Luiz Carlos Prestes, que dedicou sua vida às causas populares, menos ainda. Dos grandes líderes nacionais, somente José Bonifácio ingressou no Estado, mesmo assim foi preso e exilado, permanecendo por pouco tempo no Poder. Mas todos esses homens encarnam a História do Brasil e os valores mais sadios da sociedade de sua época”.
Concluindo: o Campo Democrático tem muito trabalho pela frente, se quiser de fato propor saídas consistentes, isolando as tentações autoritárias que se apresentam diante de nós. Para isso, só há uma maneira: tomar o pulso da realidade e, a partir dela, lutar pela construção de uma nova cultura política, incorporando as partes vivas do nosso passado de lutas, mas também atentando para as novas questões do mundo ao nosso redor.