Eleição paulistana tem potencial de desagregar o governo

NAS ENTRELINHAS

Ao se engajar diretamente na disputa paulistana, Lula dá uma guinada à esquerda na sua política de alianças, que se estreita em São Paulo

O envolvimento direto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do ex-presidente Jair Bolsonaro nas eleições para a Prefeitura de São Paulo é o epicentro de um realinhamento de forças políticas nas eleições municipais de consequências imprevisíveis. Até agora, Lula está se saindo melhor, com a refiliação de Marta Suplicy ao PT e sua indicação para a vice de Guilherme Boulos (PSol), o candidato de esquerda que lidera as pesquisas. Com isso, o candidato de Lula amplia suas possibilidades eleitorais em direção às periferias paulistas, onde a ex-prefeita é popular, e a sua capacidade de interlocução com a elite de São Paulo, da qual ela faz parte.

Na cidade de São Paulo, Lula venceu as eleições contra Bolsonaro. Obteve 3.677.921 votos, o que corresponde a 53,54% dos votos válidos, ante 3.191.484 votos — ou seja, 46,46% dos votos válidos do ex-presidente. Natural, portanto, que o prefeito Ricardo Nunes (MDB) busque o apoio da extrema direita, não apenas por intermédio do governador Tarcísio de Freitas (PR), mas com o engajamento direto do ex-presidente na sua campanha.

Essa é a condição para que o PL de Valdemar Costa Neto não lance a candidatura do deputado Ricardo Sales (PL-DF), um bolsonarista-raiz, bem-posicionado na pesquisa e que também pode, em acordo, trocar de legenda para ser candidato, se o atual prefeito já tiver batido no seu teto eleitoral. Bolsonaro jogaria com pau de dois bicos.

Entretanto, há que se observar a direção em que Lula e Bolsonaro se movimentam. Ao se engajar diretamente na disputa paulistana, o presidente dá uma guinada à esquerda na sua política de alianças, que se estreita na capital paulista como uma espécie de “frente popular”. Ou seja, não é nem a “frente de esquerda” do primeiro turno das eleições presidenciais, porque o PSB, aliado de primeira hora nas eleições passadas, manteve a candidatura da jovem deputada Tabata Amaral (SP), que será lançada hoje, com o apoio do prefeito do Recife, João Henrique Campos, do vice-presidente Geraldo Alckmin, do ex-governador Márcio França, ambos ministros de Lula, e do comunicador José Luiz Datena, cotado para ser vice.

Por incrível que pareça, quem está se deslocando em direção ao centro, para sair do isolamento, é Bolsonaro. Seu apoio à candidatura de Nunes atrai para seu campo de alianças o presidente do MDB, Baleia Rossi (SP), e o ex-presidente Michel Temer. Obviamente, com o terceiro orçamento do país, Nunes é um dos polos de atração das lideranças políticas tradicionais, tendo o apoio da maioria dos vereadores paulistanos. O outro é Tarciso de Freitas, que controla o segundo orçamento do país, com apoio de uma velha raposa da política paulista, o ex-prefeito Gilberto Kassab, presidente do PSD, articulador dessa aliança.

Lula pretende se engajar diretamente na campanha da chapa Boulos-Marta, embora isso gere fricções nas relações com o MDB e o PSB. A ministra Simone Tebet (MDB) e Alckmin fazem cara de paisagem, mas não vão de Boulos — irão de Nunes e Tabata, respectivamente. Ou seja, a “frente ampla” do segundo turno das eleições presidenciais se fragmentou em São Paulo, como estava escrito nas estrelas desde quando Lula, no primeiro turno das eleições presidenciais, se comprometera a apoiar Boulos.

A “calcificação”

Lula venceu as eleições por pequena margem, com 50,09% dos votos válidos, contra 49,01% de Bolsonaro, graças ao apoio dos setores do centro democrático aglutinados em torno de Simone Tebet, no primeiro turno. Nesse sentido, a chamada “calcificação” da polarização entre ambos é um fator de risco. São muitos os sinais de que o presidente pode perder o apoio desses setores do centro democrático.

Segundo o historiador Alberto Aggio, professor titular de História da América Latina na UNESP-Franca (SP), no artigo Uma democracia calcificada?, publicado na revista Será?, de 19 de janeiro, em Recife, o atual governo não é de união nacional nem de frente ampla, porque não incorporou aliados como Alckmin e Simone ao núcleo do poder. É fruto de um arranjo eleitoral agora ameaçado.

“O que se sobrepôs foi um governo identificado, sobretudo, com a figura de Lula, imerso nos escombros do ‘presidencialismo de coalizão’ e sem aliados leais, inteiramente submetido aos ditames e às inevitáveis — além de imponderáveis — negociações com os partidos do chamado Centrão, que dominam o Congresso.”

Isso ocorre num processo de “transformações societárias” em que o Brasil ultrapassou a possibilidade de representação da política a partir do critério de classes. “A sociedade do empreendimento individual expandiu-se, em todos os planos, de cima a baixo, colocando a democracia frente ao dilema ‘decifra-me ou te devoro’”, destaca Aggio.

Trocando em miúdos, a política classista que orienta a ação de Lula e do PT enfrenta dificuldades profundas nessa nova sociedade, para além da correlação de forças políticas desfavorável no Congresso. A hegemonia governista não depende só do poder, mas da liderança moral da sociedade. A disputa de São Paulo reflete essas contradições. (Correio Braziliense – 25/01/2024)

Leia também

“Vocês ainda vão sentir saudades do Sarney”

NAS ENTRELINHASSeu maior legado é a Constituição de 1988,...

Lula manda Casa Civil se entender com Lira

NAS ENTRELINHASMas o governo se dispõe a manter apenas...

Lula não tem empatia com o centro conservador

NAS ENTRELINHASExiste um problema de desempenho nos ministérios, mas...

A luz do poeta Joaquim Cardozo na arquitetura de Brasília

NAS ENTRELINHASMuitos arquitetos e engenheiros vieram para Brasília com...

Lira teme efeito Orloff ao deixar comando da Câmara

NAS ENTRELINHASO presidente da Câmara se tornou uma espécie...
Artigo anterior
Próximo artigo

Informativo

Receba as notícias do Cidadania no seu celular!