NAS ENTRELINHAS
A resolução da ONU reflete uma mudança de postura do governo dos Estados Unidos, que se absteve na votação, ao lado da Rússia e do Reino Unido
Imaginem um terremoto na Faixa de Gaza maior do que aquele que ocorreu em fevereiro passado na Síria e na Turquia, quando morreram 7, 2 mil pessoas e 35 mil ficaram feridas. Todos os países da região, inclusive Israel, se mobilizariam para socorrer as vítimas, enviando bombeiros, médicos, enfermeiros, psicólogos e outros profissionais. Doações de mantimentos e medicamentos, bem como equipamentos hospitalares e de construção civil, seriam providenciados, com a mobilização de organizações humanitárias para fazer com que tudo isso chegasse aos flagelados no menor espaço de tempo possível. Feridos e desabrigados seriam levados para hospitais e abrigos, respectivamente.
As imagens da destruição causada pelos bombardeios de Israel em Gaza são muito piores do que as de um terremoto daquelas proporções, mas nada disso está sendo feito, muito pelo contrário, a destruição continua. Apesar de o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), pela primeira vez, aprovar uma resolução sem vetos sobre a guerra na Faixa de Gaza, que possibilitaria a mobilização humanitária descrita acima. Israel já avisou que não pretende acatar a decisão e continuará os ataques contra o Hamas, como aconteceu no hospital Al Shifa, ocupado desde quarta-feira.
Nesta quarta-feira, as Forças de Defesa de Israel (FDI) anunciaram ter encontrado armas do Hamas no hospital e infraestrutura que seria o “coração” do grupo terrorista. Os soldados interrogaram dezenas de civis antes de liberá-los, mas há denúncias de violência contra pacientes e intimidação de médicos e enfermeiros. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o estabelecimento da ONU abriga, atualmente, 2.300 pessoas, entre pacientes, profissionais da saúde e deslocados pela ofensiva israelense no território palestino.
A resolução do Conselho de Segurança foi proposta por Malta, com foco nas crianças da Faixa de Gaza, que estão sendo mortas, muitas das quais soterradas nos bombardeios. Determina uma pausa nos ataques, para que ajuda humanitária chegue à população civil, principalmente às crianças que estão na área de conflito, muitas delas feridas ou recém-nascidas, que precisam ser resgatadas. O objetivo da pausa seria facilitar “o fornecimento contínuo, suficiente e sem entraves de bens e serviços essenciais — incluindo água, eletricidade, combustível, alimentos e suprimentos médicos”.
Entretanto, o Ministério das Relações Exteriores de Israel anunciou que não haverá pausa até que os reféns em poder do Hamas sejam libertados. A narrativa do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu para justificar os bombardeios é de que os civis, sobretudo mulheres e crianças, são usados como escudo pelo Hamas.
Novo cenário
Por ora, a decisão do Conselho de Segurança é uma declaração de intenções: Israel e o Hamas devem evitar privar a população de Gaza de serviços básicos e da assistência humanitária indispensáveis à sua sobrevivência; reparações de emergência em infraestruturas essenciais em Gaza; evacuação de crianças doentes ou feridas, e de seus cuidadores; ações de resgate de pessoas que desapareceram nos bombardeios, após edifícios do território palestino terem sido danificados e destruídos.
As resoluções do Conselho de Segurança, pela Carta da ONU, deveriam ter efeitos práticos. Nesse caso, permitir o acesso total à Faixa de Gaza das agências da ONU e de seus parceiros, como o Comitê Internacional da Cruz Vermelha e outras organizações humanitárias. Para isso, é necessária a pausa na guerra e a liberação do acesso aos hospitais e às instituições que abrigam os palestinos. Isso é impossível sem autorização do exército israelense.
A resolução da ONU, porém, reflete uma mudança de postura do governo dos Estados Unidos, que se absteve na votação, ao lado da Rússia e do Reino Unido. A resolução foi aprovada por 12 votos. China, que agora preside o órgão, e França, que tem poder de veto, votaram a favor. Albânia, Brasil, China, Emirados Árabes Unidos, Equador, França, Gabão, Gana, Japão, Malta, Moçambique e Suíça, sem poder de veto, garantiram a aprovação.
Apesar de não condenar Israel nem classificar o Hamas como grupo terrorista, a resolução tende a aumentar o isolamento internacional de Netanyahu, que não demonstra nenhuma preocupação quanto a isso, porque sabe que os Estados Unidos não romperão os compromissos financeiros e militares que já assumiram nesta guerra. A abstenção norte-americana na votação deve-se à enorme pressão da opinião pública mundial e do desgaste junto aos países muçulmanos, principalmente países árabes da região.
O Ministério das Relações Exteriores do Brasil, que muito se empenhou pela aprovação, comemorou a decisão, que vai facilitar o resgate dos brasileiros que ainda estão em Gaza. A abstenção dos EUA coincide com o encontro entre o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, e o presidente da China, Xi Jinping, que não trataram do assunto publicamente. Entretanto, Biden vem reiterando a posição favorável à existência de dois Estados e que a Cisjordânia e a Faixa de Gaza, após a guerra, sejam administradas pela Autoridade Palestina, posição que o atual governo de Israel não aceita. (Correio Braziliense – 16/11/2023)