Luiz Carlos Azedo: A cortina que encobre as escolas cívico-militares

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE

Criação das escolas com objetivos civis pelo ex-presidente Bolsonaro não passa de uma tentativa de encobrir a realidade social de nossas crianças e adolescentes

Autor de A Insustentável Leveza do Ser, o escritor tcheco Milan Kundera, que morreu quarta-feira, em Paris, aos 94 anos, foi também um notável ensaísta, com três livros sobre literatura, um dos quais inspira esta coluna: A Cortina (Companhia das Letras), ensaio em sete partes. Kundera mostra dificuldades de reconhecimento de um bom autor que escreve numa língua singular, como o tcheco. A Brincadeira, seu primeiro romance, que encantou o escritor francês Louis Aragon, foi publicado na antiga Tchecoslováquia, em 1967, durante a abertura ideológica que antecedeu a Primavera de Praga.

Duas vezes expulso do Partido Comunista, em 1950 e 1970, após exilar-se na França, Kundera decidiu escrever em francês. Não permitia, porém, que nenhuma outra pessoa traduzisse seus livros para o tcheco. Seu último romance, A Festa da Insignificância, que relata as peripécias de quatro amigos que vivem em Paris, foi lançado em 2014 e rompeu um silêncio de 14 anos. Nas três últimas décadas, recusou-se a dar entrevistas. Também proibiu que suas obras fossem adaptadas para o cinema, após o sucesso cinematográfico A Insustentável Leveza do Ser, sob a direção de Philip Kaufman, com Daniel Day-Lewis, Juliette Binoche e Lena Olin no elenco.

A Insustentável Leveza do Ser é um clássico da literatura universal. Foi publicado em 1984, na França, tendo como personagens centrais um cirurgião e uma fotógrafa. Kundera era avesso à fama, embora circulasse por Paris como um “flanêur”, acompanhado de Vera, sua mulher. Naturalizado francês em 1981, perdeu a nacionalidade tcheca em 1978 e somente a recuperou em 2019. Dizia que “o romancista não precisa prestar contas a ninguém, exceto a Cervantes”.

Mentalidade

No livro A Cortina, Kundera destaca a importância de Miguel de Cervantes, autor de Dom Quixote, obra prima do Renascimento, considerada a invenção do romance: “Uma cortina mágica, tecida de lendas, estava suspensa diante do mundo. Cervantes mandou Dom Quixote viajar e rasgou essa cortina. O mundo se abriu diante do cavaleiro errante em toda a nudez cômica de sua prosa”, explica. Segundo ele, “quando o mundo corre em nossa direção, no momento em que nascemos, já está maquiado, mascarado, pré-interpretado.”

Durante séculos, essa cortina encobriu o mundo real para reproduzir o status quo do feudalismo. Cervantes desnudou o atraso, a opressão e a exploração na Idade Média, através de uma picaresca história de amor, as aventuras e desventuras de Dom Quixote, um homem de meia idade, que resolveu se tornar cavaleiro andante depois de ler muitos romances de cavalaria. Com seu cavalo e armadura, resolve lutar para provar seu amor por Dulcineia de Toboso, uma mulher imaginária, acompanhado de Sancho Pança, seu fiel escudeiro. Moinhos de vento e ovelhas se tornam gigantes e exércitos inimigos, fantasia e realidade se misturam.

Peço perdão a Kundera pela analogia com seu obituário, mas a criação de escolas militares com objetivos civis pelo ex-presidente Jair Bolsonaro não passa de uma tentativa de encobrir a realidade social de nossas crianças e adolescentes com um manto de ideias preconcebidas e conservadoras, como na Idade Média, para formação de uma mentalidade militarista e reacionária, em sintonia com seu projeto iliberal. Como modelo pedagógico, está fadada ao fracasso.

Uma coisa são os colégios militares das nossas Forças Armadas, cuja excelência está ligada à qualidade do ensino das matérias, mas são destinadas à formação e adestramento básico de futuros militares por vocação. Outra, é a doutrinação militarista pura e simples de futuros profissionais civis, com adoção de métodos pedagógicos ultrapassados. Nem o regime militar chegou tão longe, mesmo com as formaturas no hasteamento da bandeira e as aulas de “moral e cívica”.

Muitos pais acreditam que a escola cívico-militar de Bolsonaro resolverá o futuro de seus filhos, diante das deficiências do ensino público, com a substituição da boa educação familiar pela disciplina típica dos quarteis. Mas isso é um anacronismo. As escolas religiosas tradicionais, inclusive as destinadas à formação teológica e clerical, já abandonaram velhos ritos disciplinares e litúrgicos.

A revolução digital e a mudança dos costumes, que geram insegurança e instabilidade social, exigem outro tipo de formação, mais universal, flexível e culturalmente mais aberta. Esse é o grande debate da atualidade no ensino médio. O professor e romancista francês Daniel Pennac, por exemplo, não teria vez numa escola cívico-militar. Seu livro Diário de Escola (Rocco) conta a história de um aluno lerdo, atormentado pelas próprias limitações nas aulas de aritmética e gramática, e um tormento para a família, por causa da caderneta escolar. Até que um professor se aproxima, compreende suas limitações e lhe dá uma atenção especial. Sim, o aluno lerdo era Pennac, filho de general, autor de romances, literatura juvenil, contos para crianças, histórias em quadrinhos e roteiros para cinema e tevê. (Correio Braziliense – 14/07/2023)

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