Felipe Salto – Reforma tributária: ao inferno à procura de luz

O Conselho Federativo para cuidar do novo tributo subnacional e o FDR tornaram-se aberrações da proposta em discussão no Congresso

O Conselho Federativo para cuidar do novo tributo subnacional e o Fundo de Desenvolvimento Regional (FDR) tornaram-se aberrações da proposta de reforma tributária em discussão no Congresso. Na sua forma atual, essas ideias maculam profundamente a iniciativa. Tratarei dos outros problemas nas próximas colunas.

Comecemos pela questão do tal conselho. Há três etapas no processo tributário: 1) a previsão constitucional para instituir um tributo (imposto, taxa ou contribuição) pela União, Estado ou município; 2) sua instituição propriamente dita, por meio de lei; e 3) sua regulamentação pelo respectivo Poder Executivo. A saber, o regulamento contém as regras necessárias para operacionalizar a arrecadação, atividade típica dos governos.

O Conselho Federativo não cabe nessa lógica. De acordo com a PEC n.º 45, na versão com IVA dual, o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) seria instituído como um tributo conjunto dos Estados e municípios. Em seguida, o Conselho Federativo regulamentaria e cuidaria de arrecadar e partilhar o IBS entre os governos subnacionais.

Para ter claro: esse órgão central seria o responsável pela arrecadação e por sua distribuição entre Estados, municípios e contribuintes (no caso dos créditos apurados devidos). O IBS, um imposto subnacional sobre o valor adicionado, substituiria o ISS (municipal) e o ICMS (estadual). Assim, algum mecanismo de split payment ou de divisão do bolo – tão simples quanto isso – seria de fato necessário. A tributação passaria integralmente ao Estado de destino das transações, requerendo meios para enviar cada fatia da receita do imposto a quem de direito. O Estado e o município não comandariam o processo, mas, sim, um órgão representativo.

Por exemplo, quando uma empresa de um município exportasse uma mercadoria a um contribuinte de outro município, por hipótese, localizado num segundo Estado, o imposto seria sempre recolhido no destino (e não preponderantemente na origem, como atualmente). Além disso, o que é comum, a cadeia de produção poderia estar espalhada por diversas localidades. Ao ser consumido o bem final, a arrecadação seria distribuída na devida proporção para Estados e municípios de destino, observada também a parcela da cota-parte do antigo ICMS. Os contribuintes que tivessem direito a créditos gerados ao longo da cadeia de produção os receberiam por meio de uma mesma conta central. O conselho chefiaria tudo isso. A imagem da “mesada”, usada pelo governador de Goiás, Ronaldo Caiado, foi oportuna nesse aspecto. Difícil de imaginar quem aceite um arranjo assim.

Quem deve comandar sua própria arrecadação é o Estado, o município ou a União. Aliás, o que diria a União se alguém lhe impusesse um conselho para gerenciar seus tributos? E a cereja do bolo indigesto: a governança da poderosa instância pretendida seria definida em lei complementar. Um salto no escuro já; os “meros detalhes” depois.

Cabe, ainda, perguntar sobre a dinâmica da fiscalização e da arrecadação. Um exemplo: e se houver créditos derivados de notas fraudadas e o contribuinte for inadvertidamente pago pela conta central? Como se daria essa fiscalização? Seria também o Conselho Federativo o responsável? Difícil de imaginar os Estados confortáveis. Já se sabe que ao menos 12 deles seriam contrários a esse modelo de gestão.

É irrazoável entregar a um órgão de representação 100% das receitas do próprio tributo. O ICMS e o ISS correspondem a algo como 9% do PIB, mais de 1/4 da carga tributária do País. A propósito, o paralelo com o Comitê Gestor do Simples Nacional é inútil. Lançaram mão dessa comparação para reiterar a ideia-força de uma gestão central. Balela. A parcela de ICMS e ISS (do Simples) representa 3% da arrecadação desses dois impostos.

Uma saída seria instituir contas individualizadas. Outra seria o Estado exportador responsabilizar-se pela distribuição da receita, sujeito a punições severas para o caso de desrespeito à regra. Agora, um passo atrás: por que jogar fora o ISS e o ICMS ao invés de melhorá-los por meio de legislação infraconstitucional? Se a guerra fiscal é um dos problemas – e é –, que se preveja sanção! O princípio do destino poderia concretizar-se por resolução do Senado, como defendo desde que fui secretário da Fazenda em São Paulo, em 2022.

As resistências dos Estados à reforma têm sido respondidas, em parte, com o FDR. Ele deve ficar blindado das regras fiscais e já se cogita colocar R$ 100 bilhões, do bolso da União, para bancar os malogrados incentivos do ICMS (e não para promover o desenvolvimento econômico integrado da Nação). Fala-se em manter esses benefícios até 2032, verdadeira usina de ineficiência econômica, que passaria a alimentar-se da União, com o FDR. Os riscos são: perenizar os incentivos, neutralizando os ganhos alocativos da migração da tributação para o destino da operação; e assumir um custo fiscal impeditivo, com aumento da complexidade no lugar da simplificação apregoada.

Não me ocorre nada mais apropriado do que recorrer a Lupicínio Rodrigues: “Se eles julgam que há um lindo futuro (…), saibam que deixam o céu por ser escuro e vão ao inferno à procura de luz”. (O Estado de S. Paulo – 22/06/2023)

FELIPE SALTO, ECONOMISTA-CHEFE DA WARREN RENA, FOI SECRETÁRIO DA FAZENDA E PLANEJAMENTO DO ESTADO DE SÃO PAULO E O PRIMEIRO DIRETOR-EXECUTIVO DA IFI

Leia também

Queda de braço que vale R$ 110 bilhões

NAS ENTRELINHASPacto com o Supremo é negado nos bastidores...

O padrão a ser buscado

É preciso ampliar e replicar o sucesso das escolas...

Parados no tempo

Não avançaremos se a lógica política continuar a ser...

Vamos valorizar a sociedade civil

Os recentes cortes promovidos pelo Governo Federal, atingindo em...

Petrobrás na contramão do futuro do planeta

Na contramão do compromisso firmado pelo Brasil na COP...

Informativo

Receba as notícias do Cidadania no seu celular!