NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE
Quando o governo decide aumentar seus gastos sociais, de algum lugar esses recursos precisam sair. A conta não fecha
Não custa nada repetir: o governo Lula 3 não é uma continuidade dos governos 1 e 2. Os dois mandatos anteriores do presidente da República foram bem-sucedidos e consagrados nas urnas, com a sua própria reeleição e a eleição de Dilma Rousseff, enquanto o mandato atual está apenas começando, num cenário completamente diferente dos anteriores — muito mais difícil do ponto de vista econômico, social e político. Por enquanto, o sucesso de Lula 3 é apenas uma probabilidade, mais ou menos equivalente aos seus 50,9% de votos válidos no segundo turno do ano passado. Não é pouca coisa.
Uns têm a impressão de que o governo vai muito devagar, outros que o universo conspira contra Lula. Leonard Mlodinow, em seu livro O Andar do Bêbado, explica que isso está associado à importância da memórias mais “disponíveis”, sobretudo as boas recordações. Quando escolhemos aleatoriamente um caixa de supermercado, temos a sensação de que a nossa fila é mais lenta. Entretanto, a chance de que isso aconteça, caso existam 10 caixas, é de apenas 10%. Essa probabilidade é a mesma para todos, mas temos a impressão de que é mais lenta porque prestamos atenção em tudo o que acontece à nossa frente.
O Andar do Bêbado é um livro dedicado ao acaso na vida das pessoas, que conta a história da lei das probabilidades, com exemplos surpreendentes, como o movimento caótico das partículas suspensas em água, que serviu para os trabalhos de Albert Einstein sobre a física estatística no começo do século passado. Muitas vezes o governo se move aleatoriamente, como se estivesse bêbado. Em outras, temos a impressão de que passou a fazer a mesma coisa de forma pior, só porque foi elogiado.
Na verdade, esse é um fenômeno matemático, chamado de regressão à média: em qualquer série de eventos aleatórios, há uma grande probabilidade de que um acontecimento extraordinário seja seguido, em virtude do acaso, de um fato mais vulgar. É o que acontece com o cenário no qual Lula realiza seu novo mandato. Do ponto de vista econômico, o período de junho de 2003 a julho de 2008 foi a fase de maior expansão para a economia brasileira das últimas três décadas.
Naqueles cinco anos, a indústria se expandiu, as vendas do comércio registraram alta e a geração de emprego e renda cresceram. Foram 61 meses de bonança, interrompido pela crise financeira de 2008, que provocou seis meses de recessão, de junho de 2008 a janeiro de 2009. Nesse período, para sair da crise, foi adotada uma política anticíclica que deu bons resultados, mas sua transformação em modelo econômico a ser seguido — a tal “nova matriz econômica” —, no governo Dilma Rousseff, resultou num fracasso.
Novo cenário
Agora, Lula assume o governo com uma economia em situação diferente. Já não há o boom das commodities nem o bônus demográfico (aumento da população economicamente ativa em relação às crianças e idosos), muito menos a fartura de picanha, que anabolizaram o seu governo e a sua popularidade. Houve uma acomodação de fatores, a tal regressão à média. No exterior, foi contido o risco sistêmico desencadeado pela crise bancária que se manifestou nos Estados Unidos e na Europa. O fim da pandemia, principalmente da política de Covid Zero da China, é positivo para o crescimento do PIB mundial.
No cenário interno, a apresentação da proposta de arcabouço fiscal ao Congresso contribuiu para arrefecer a percepção de risco pelos agentes econômicos. Outro sinal positivo é a taxa de câmbio no patamar médio de R$ 5,00 durante o mês. A inflação deve ficar abaixo dos 5%, mas a manutenção da taxa de juros de 13,75% (Selic) pelo Banco Central (BC) continua sendo um drogue para a economia.
O sucesso do governo Lula depende da aprovação do novo arcabouço fiscal e da reforma tributária. Esses não são fatores aleatórios. O xis da questão é o buraco de R$ 300 bilhões na arrecadação prevista para 2023, de R$ 5,3 trilhões. Como alcançar essa diferença? Nem o Executivo nem o Congresso estão dispostos a cortar gastos. Sem isso, as metas do arcabouço fiscal não serão cumpridas ou haverá aumento de impostos.
Quando o governo decide aumentar seus gastos sociais, de algum lugar esses recursos precisam sair. A conta não fecha. O conflito distributivo tende a se agravar se a economia não voltar a crescer.
Por essa razão, mas não exclusivamente, existe uma dicotomia entre as expetativas do mercado e as da sociedade, que repercute no Congresso. O mercado quer o país no rumo da redução do deficit fiscal por meio do corte de gastos públicos, a maioria da sociedade quer que a economia cresça e as políticas sociais sejam mais robustas.
Lula não pode deixar de pedalar a bicicleta para não cair. As rodas são o crescimento econômico e a redistribuição de renda. Mas pode administrar melhor a velocidade. E torcer para que a Fortuna, o aleatório na política, lhe seja mais favorável.
Entretanto, segundo Mlodinow, o ser humano não está preparado para lidar com o aleatório, muitas vezes nem o reconhece. Muitos usuários dos primeiros iPod duvidavam da aleatoriedade com que as músicas eram tocadas, porque um mesmo artista ou música tocava mais de uma vez. A saída encontrada por Steve Jobs, segundo o livro, foi reprogramar o iPod para que evitasse repetições e deixá-lo menos aleatório para parecer mais aleatório. (Correio Braziliense – 07/05/2023)