Lu Aiko Otta: Agenda Haddad na corrida de obstáculos

Há momentos em que decisões do presidente Luiz Inácio Lula da Silva parecem contraproducentes para o próprio governo

Não é de hoje, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem atropelado a agenda do ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Chefe tem esse direito. Mas há momentos em que essa prática parece contraproducente para o próprio governo.

O caso do incentivo fiscal ao consumo de automóveis é um exemplo. Para socorrer as montadoras, que amargam uma taxa de ociosidade de 50%, o governo aceitou dar descontos no Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e nas contribuições PIS/Cofins, que somarão entre 1,5% e 10,96%.

Abrir mão de receitas não parece boa ideia nesse momento. A principal dúvida do mercado em relação ao novo arcabouço fiscal é se ele será capaz de entregar o prometido, pois para isso será necessário elevar fortemente a arrecadação. A ajuda às montadoras vai na direção contrária.

Atropela o discurso do ministro que, exatamente para elevar receitas, vem defendendo cortar em 25% a conta dos gastos tributários. Esse é um conjunto de medidas destinadas a reduzir ou eliminar a cobrança de impostos sobre setores ou produtos que chega a R$ 600 bilhões. Há os que são benéficos à economia, diz ele. E há os ditos jabutis – aqueles que só estão no alto das árvores por força de enchente ou mão de gente.

Não foi o primeiro atropelamento. Haddad já estreou como ministro da Fazenda pilotando uma crise: o adiamento, de 1º de janeiro para 1º março, da volta dos tributos federais sobre combustíveis.

No caso dos automóveis, a equipe de Haddad trabalha para limitar os danos. Quer manter os descontos de impostos pelo menor tempo possível. As montadoras pediram pelo menos um ano. Haddad disse em entrevista à GloboNews que deve ser coisa de três ou quatro meses.

Investir contra a concretização do arcabouço fiscal é má ideia principalmente porque os juros de longo prazo começaram a cair após a aprovação da proposta na Câmara dos Deputados. O mercado trabalha com taxas na casa dos 10% daqui a 18 meses, apontou o secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Gabriel Galípolo, indicado para diretor de Política Monetária do Banco Central, em evento na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).

Isso, mesmo considerando que ninguém do mercado morreu de amores pela nova regra, considerada frouxa. E que ela, a rigor, ainda não existe. Precisa passar pelo Senado, onde tende a ser retida por algum tempo e a sofrer modificações, antes de virar lei.

Com todas essas ressalvas, a aprovação do arcabouço reforçou um quadro propício ao corte da taxa de juros básica da economia, a Selic, hoje em 13,75%. Os números mostram que o mercado enxerga juros menores à frente.

Também nesse ponto, os ataques de Lula ao presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, e à autonomia do Banco Central não ajudaram. Durante o tiroteio, qualquer movimento em direção ao corte da taxa, se houvesse condições, seria confundido com interferência política na autoridade monetária – o que não seria bom.

A queda dos juros de forma consistente e sustentada, isso sim, ajudaria a destravar as vendas. Não só das montadoras, mas para toda a economia.

Potencial candidato à sucessão de Lula, Haddad não posa de derrotado. Pelo contrário, procura colocar panos quentes nas situações. Pondera que os pedidos do presidente refletem o programa econômico que venceu nas urnas em outubro de 2022. E que o ambiente politicamente polarizado exige cautela nas ações do governo. Aos poucos, porém, vai impulsionando sua agenda.

Na negociação com a indústria automobilística foram discutidas outras medidas mais modernas, estruturais e de caráter horizontal, que ajudariam toda a economia, e não apenas um setor. Por exemplo, o novo marco legal para garantias.

É um projeto de lei elaborado no governo de Jair Bolsonaro que já foi aprovado na Câmara e aguarda votação no Senado. A atual equipe de governo examinou a proposta e está de acordo com os pontos que facilitam aos agentes financeiros executar garantias para não tomar calote. É uma forma de reduzir juros.

Haddad sinalizou com um programa de depreciação acelerada, que permitirá às empresas recuperar mais rapidamente os investimentos que fizerem na compra de novas máquinas e equipamentos. Essa recuperação se dá via redução de impostos, o que demonstra que o ministro admite o uso de estímulos tributários, a depender de sua finalidade.

No caso, a renovação do parque industrial vai na direção da agenda ambiental que o governo diz ter abraçado. O incentivo fiscal a automóveis individuais movidos a combustíveis fósseis e as hesitações quanto à exploração de petróleo no litoral da região Norte vão na direção contrária.

O papel do Brasil como potência ambiental tem sido reforçado em todos os foros internacionais de que o país participa. No entanto, os benefícios desse futuro que tanto promete ainda não são palpáveis. Só serão vislumbrados a partir do segundo semestre.

Num governo ainda sem uma marca, a estratégia econômica avança. Seria bom o conjunto do governo apoiá-la. (Valor Econômico – 31/05/2023)

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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