Luiz Carlos Azedo: Golpistas embaralham investigações do 8 de janeiro

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE

Para aumentar as dúvidas, Gonçalves Dias dissera ao presidente da República que a câmera de segurança que gravou as imagens fora quebrada e ainda decretou sigilo sobre os demais vídeos

Há mais coisas entre o céu e a terra do que os aviões de carreira, como diria o Barão de Itararé. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, levaram uma bola nas costas nessa história dos vídeos da invasão do Palácio do Planalto. Lula teve que demitir o chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Gonçalves Dias, que mantivera no cargo mesmo depois dos episódios de janeiro, porque confiava no amigo. Deveria ter separado a amizade das razões de Estado e defenestrado o general no mesmo dia. Não por uma questão de lealdade, que agora foi posta em dúvida, mas por incompetência mesmo.

Um “case” famoso de liderança é a história de um chefe de equipe de bombeiros em Los Alamos, no Novo México. Incêndios florestais, alimentados por ventos de até 100km/h, são constantes na região. Destroem casas e até o famoso laboratório onde foram fabricadas as bombas nucleares lançadas em Hiroshima e Nagasaki, no Japão, no final da Segunda Guerra Mundial, já foi ameaçado. Há uns 20 anos, as chamas atingiram um edifício de pesquisa, uma construção de granito que contém poderosos explosivos, e chegaram a menos de 300m do depósito de plutônio usado na fabricação das bombas.

A grande dificuldade para combater os incêndios em Los Alamos são os ventos fortes e traiçoeiros, que mudam muito de direção. No caso citado, muito experiente, o chefe dos bombeiros percebeu que sua equipe seria cercada pelo fogo, pois a velocidade do vento era muito maior do que a capacidade de deslocamento dos bombeiros. Determinou, então, que todos ficassem onde estavam e incendiassem uma área suficientemente grande para que pudessem nela entrar e evitar que o incêndio principal tivesse o que queimar quando chegasse, o que de fato conseguiu evitar.

Entretanto, somente dois integrantes da equipe aceitaram sua orientação. Os demais tentaram fugir do fogo e morreram queimados, ao serem alcançados pelas chamas. O chefe da equipe de bombeiros fez tudo certo, mas, mesmo assim, foi demitido. Faltou-lhe capacidade de liderança.

É mais ou menos a situação do general Gonçalves Dias, na melhor das hipóteses. Deveria ter sido afastado no próprio dia 8 de janeiro. Agora, com a divulgação das imagens, sua situação se complicou ainda mais.

O mais grave, porém, é que complicou também a posição do governo, porque os vídeos corroboram a narrativa bolsonarista de que houve omissão das autoridades do governo. E embaralham as investigações.

As desculpas dadas por Gonçalves Dias são até plausíveis. Chegou ao local depois da invasão, não estava acompanhado de uma tropa capaz de enfrentar os vândalos que quebravam tudo pela frente, agiu para evitar que o terceiro e o quarto andares do Palácio do Planalto fossem invadidos, inclusive o gabinete presidencial. Os vídeos permitem esse tipo de interpretação, até porque foram editadas claramente com o objetivo de incriminá-lo.

Há muito a esclarecer. Por exemplo: a razão da preservação da identidade dos agentes do GSI que conversam amistosamente com os invasores. Para aumentar as dúvidas sobre seu comportamento, Gonçalves Dias dissera ao presidente da República que a câmera de segurança que gravou as imagens fora quebrada e ainda decretou sigilo de cinco anos sobre os demais vídeos.

Imagens

Sabe-se agora que as imagens reveladas pela CNN eram de conhecimento da Polícia Federal (PF), do Ministério Público Federal (MPF) e do Exército. Mas o GSI não sabia? Gonçalves Dias alega que foi traído. Quando houve a invasão, sua equipe era a mesma que havia sido formada pelo general Augusto Heleno, seu antecessor.

Entretanto, chefiou a equipe de transição do governo Lula na área de segurança e poderia ter escalado outro time, de sua confiança, no mesmo dia em que o Diário Oficial publicou sua nomeação. Na melhor hipótese, prevalecera o espírito de caserna.

O ministro Alexandre de Moraes foi pego de surpresa. No dia da invasão, afastou o governador de Brasília, Ibaneis Rocha, enquanto Lula decretava uma intervenção na segurança pública do GDF. Mandou prender o ex-secretário de Segurança Anderson Torres, que fora ministro da Justiça de Bolsonaro. Já iniciou o julgamento dos bolsonaristas presos no acampamento em frente ao Estado Maior do Exército, em 9 de janeiro — cerca de 1,4 mil pessoas. Foram ouvidos até agora 81 militares.

Ontem, Moraes determinou que o governo informe se cumpriu integralmente duas decisões anteriores assinadas por ele: a obtenção das imagens de “todas as câmeras do Distrito Federal” e a oitiva de todos os envolvidos na contenção dos atos de 8 de janeiro.

Mandou ouvir, também, o general Gonçalves Dias e, novamente, o ex-ministro da Justiça Anderson Torres, que é peça-chave da investigação. Em sua casa, fora apreendida uma minuta de decreto de Bolsonaro que anularia as eleições e destituiria Moraes da presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Anderson, o candidato a vice Braga Neto, os generais Luiz Ramos (Secretaria de Governo) e Augusto Heleno (GSI), e o então comandante da Marinha, almirante Almir Garnier Santos, estavam dispostos a impedir a posse de Lula, se fosse dada a ordem para isso.

Bolsonaro foi demovido pelos ministros Ciro Nogueira (Casa Civil), Fabio Faria (Comunicações), e o almirante Flávio Rocha (Assuntos Estratégicos). Foi aconselhado a deixar o país num jantar com o ministro Supremo Tribunal Federal (STF) Dias Tofolli, na casa de Faria. Em Miami, ao lado de Anderson e do filho Eduardo Bolsonaro (PL-SP), Bolsonaro acompanhou o 8 de janeiro de camarote. (Correio Braziliense – 21/04/2023)

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. 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Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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