Luiz Carlos Azedo: A grande política de volta ao Congresso

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE

Instalação da CPI Mista para investigar os atos de 8/1 e aprovação da urgência do PL das Fake News mudam agenda política

Fisiologismo, nepotismo e patrimonialismo, cuja mais perfeita tradução é o chamado “orçamento secreto”, fazem parte da pequena política que move o dia a dia do Congresso: as disputas parlamentares por viagens e apartamentos; as articulações de interesses privados, em detrimento das políticas públicas, nos seus corredores; as intrigas de bastidor em disputas por verbas e cargos no governo; a perversa subsunção dos partidos pelas suas bancadas fazem parte da nossa vida política.

Nesta semana, tudo isso estará em segundo plano, quiçá pelos próximos meses também, porque os grandes interesses da sociedade voltaram à pauta. Por exemplo, a Câmara, ontem, aprovou o pedido de urgência para a votação do projeto de lei das fake news (PL 2.630/2020), que regula a atuação das chamadas big techs no Brasil, assunto já tratado aqui, em 19 de abril, na coluna intitulada “Ministro quer enquadrar as big techs na Constituição”. A votação do requerimento permitirá que a matéria seja votada diretamente no plenário da Câmara, na próxima semana, depois de três anos de tramitação nas comissões técnicas da Casa do projeto originário do Senado. Foram 238 votos a favor e 192 contrários, depois de uma manobra da bancada bolsonarista, liderada pelo deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), para impedir a votação da urgência. Esse resultado mostra que haverá disputa dura.

Essa é a primeira agenda estratégica para a democracia brasileira em pauta no Congresso. Um exemplo do que é a grande política trata da fundação e conservação do Estado, da manutenção de determinadas estruturas econômico-sociais ou sua destruição. O conceito de hegemonia do pensador italiano Antonio Gramsci é bastante reconhecido, porque descreve como o Estado usa, nas sociedades ocidentais, seus aparatos ideológicos para conservar o poder: a religião, a escola, os meios de comunicação etc. No seu conceito de hegemonia, porém, o pleno exercício do poder político está associado à liderança moral da sociedade.

Numa leitura reacionária dessa abordagem, por essa razão, a extrema direita vê a ciência, a educação e a cultura como ameaças, atua no sentido de neutralizar o papel de cientistas, intelectuais e artistas na construção de uma sociedade democrática, do desenvolvimento sustentável, do acervo técnico-científico e da identidade cultural do país. Mesmo que para isso seja necessário recorrer à força.

O jornalista e cientista político da Universidade de São Paulo (USP) Oliveiros S. Ferreira, já falecido, escreveu um livro sobre o conceito de hegemonia no qual se remete à Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), que conflagrou a Europa. Nela, um pequeno grupo de 45 cavaleiros húngaros, com suas armaduras, durante seis meses aterrorizou o condado de Flandres, a região flamenca da Bélgica. Repete uma indagação de Gramsci sobre esse episódio: como o conseguiram? Como e por que o grande número, mais forte, se submete ao pequeno?

Ideólogo do pensamento conservador no Brasil, Oliveiros Ferreira foi um estudioso do protagonismo dos militares na história republicana e crítico do castilhismo golpista. Num artigo para o jornal O Estado de S. Paulo, de 26 de junho de 1988, intitulado “O reconhecimento da derrota”, ele resgata uma carta do general Góes Monteiro ao jurista liberal Sobral Pinto, na qual o então ministro da Guerra, em abril de 1945 — ou seja, pouco antes do fim do Estado Novo —, reconhece a derrota do “partido fardado” diante de uma nação “que não compreendia e que nunca poderia compreender”. Segundo ele, porque trouxera da Escola Militar “um modelo de tirania esclarecida”.

“Eu reclamava poder, ordem, disciplina e ardor para, em 10 anos pelo menos, como recorda V.Exa., preparar a nova elite e poder modificar as condições de ignorância e miséria das massas, responsáveis pelo aviltamento da prática constitucional”, lamentava o general do Estado Novo. O ex-presidente Bolsonaro tentou mobilizar seus cavaleiros húngaros três vezes, no 7 de Setembro de 2019, no dia da diplomação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e no 8 de janeiro. Em nenhuma delas conseguiu que as Forças Armadas vestissem as armaduras.

A propósito, hoje a grande política novamente tomará conta dos debates do Congresso, com a instalação de uma CPI Mista para investigar o que aconteceu naquele segundo domingo de janeiro, uma semana após a exuberante cerimônia de posse do presidente Lula da Silva. A votação de ontem, apesar da vitória do governo, mostrou uma oposição aguerrida e numerosa, porém descolada dos interesses majoritários da sociedade e de suas instituições democráticas. É bom lembrar que 8 de janeiro foi o resultado do uso das redes sociais como instrumento de mobilização para a tomada do poder, com uso generalizado de fake news e emprego de violência na ocupação dos palácios dos Poderes da República.

Esse episódio serviu para desconstruir uma visão política glamourosa e idílica das redes sociais e da internet como ferramentas avançadas e absolutas da participação no jogo democrático. Pelo contrário, a utilização perversa de algoritmos tem servido para embaralhar a consciência cívica e enfraquecer a democracia representativa, além de fomentar a violência na sociedade, inclusive entre crianças e adolescentes nas escolas. É preciso mais compromisso das big techs com a ordem democrática e a construção de um ambiente social mais saudável. (Correio Braziliense – 26/04/2023)

Leia também

Não chamem Lula, Maduro e Ortega para jantar

O Brasil equilibra-se entre dois polos, os Estados Unidos e a China, o que tensiona a política externa toda vez que se aproxima demais dos parceiros do Brics.

A vida e as lutas de Enrico Berlinger

Escute o comentário do historiador Ivan Alves Filho.

Lula é o grande ausente na reunião do Brics

O Brasil é um dos fundadores do Brics, como a Índia e a África do Sul, mas quem dará as cartas no grupo na reunião de hoje é a China, aliada à Rússia. A propósito, o encontro ocorre à sombra da guerra da Ucrânia.

Duplos atrasos

Os erros: o uso de celulares nas escolas e a ignorância dos avanços.

‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎
Artigo anterior
Próximo artigo

Informativo

Receba as notícias do Cidadania no seu celular!