A elite rica aprendeu que a bola redonda para todos impediu que seus filhos chegassem à Seleção brasileira.
Quando um motorista de táxi comentou sobre a opulência de uma casa onde esteve, perguntei como explicava aquele tamanho. Ele respondeu: “Porque o dono é rico”. Eu disse: “Não! É porque os pedreiros são pobres. Se a renda do dono fosse próxima ao salário do pedreiro, ele não teria condições de bancar a construção”. Então, perguntei: “E o que você acha que faz o pedreiro pobre e o dono da mansão rico?” Ele pensou um pouco e disse: “O pai do dono pode pagar estudo em boa escola para o filho, e o pedreiro não teve essa chance”. Percebi que estava diante de um educacionista: com a visão rara, tanto na direita, quanto na esquerda.
Os futuros historiadores dirão que a secular recusa do Brasil a oferecer educação com a mesma qualidade a todas as suas crianças teriam uma explicação: evitar a distribuição dos benefícios econômicos conforme o talento de cada pessoa. Ao restringir a educação com qualidade apenas aos que poderiam pagar por uma boa escola, o sistema impedia o florescer do talento entre as crianças pobres e, portanto, barrava a distribuição da renda quando elas fossem adultas.
Para comprovar essa teoria, alguns historiadores lembrarão que a bola de futebol, sendo redonda para todos, permitiu a distribuição da renda para os jogadores talentosos, mesmo filhos de famílias pobres. Se as escolas tivessem todas a mesma qualidade, tanto quanto as bolas de futebol são igualmente redondas, o talento determinaria o salário da pessoa sem relação com a origem familiar.
No passado, a concentração de renda era determinada pela herança na propriedade de terra, depois por herança de capital em dinheiro ou ativos. Na sociedade moderna, com a importância do conhecimento, a concentração de renda vem do monopólio da educação, obtida pelos que podem comprá-la. A herança é colocada no cérebro dos filhos cujos pais pagaram por educação de qualidade.
Os historiadores lembrarão que, no período escravagista e no primeiro século da República, negava-se vaga nas escolas aos pobres. Quando ficou impossível negar matrícula, passou-se a utilizar a desigualdade na qualidade. Mantinha-se a ilusão de que todos estavam matriculados, mas o sistema escolar adotou “escola casa grande”, para os que podiam pagar, e “escola senzala” para os que precisavam se contentar com escolas sem qualidade.
Para explicar como foi possível esconder que a negação de escola com qualidade para todos prejudicava o país inteiro, os historiadores dirão que, na política, o egoísmo foi maior do que o patriotismo, e na lógica política não se defendeu que a criação e distribuição de conhecimento antecede a criação e a distribuição de renda.
A sociedade não percebeu que a montagem de uma estrutura social para a distribuição de renda passaria antes pela montagem de uma estrutura educacional que distribuiria conhecimento, independentemente da renda da família; que a educação de qualidade para todos é a base da produtividade econômica, que amplia a renda nacional; e que a equidade no acesso à educação com qualidade é a base para a distribuição da renda nacional entre as pessoas, conforme o talento e o esforço de cada indivíduo.
A estupidez vai explicar como foi possível criar a ilusão de que investir bilhões para retirar petróleo do fundo do mar seria mais benéfico para os pobres do que colocar toda criança em escola de qualidade. O egoísmo explicará a lógica porque as classes médias preferiram gastar parte de suas rendas para educação de seus filhos, no lugar de pleitearem escolas grátis com qualidade para todos; o sacrifício de pagar foi o custo para que seus filhos não tivessem de disputar sucesso com base no talento dos filhos dos pobres.
A elite rica aprendeu que a bola redonda para todos impediu que seus filhos chegassem à Seleção brasileira. Não vão deixar que isso aconteça na Copa do Conhecimento. Além disso, preferiram que o Estado concedesse subsídios às escolas particulares e que as universidades de qualidade fossem públicas e gratuitas. Com educação de qualidade apenas para seus filhos, essas universidades ficaram reservadas para eles.
Os historiadores darão essas explicações que parecerão tão absurdas que não serão aceitas. Terão dificuldade, sobretudo, em explicar como foi possível que líderes políticos sensíveis e comprometidos com os pobres não adotassem a bandeira de escolas de base com a mesma qualidade, graças a um Sistema Único Nacional Público de Educação de Base. (Correio Braziliense – 04/04/2023)
Cristovam Buarque, professor emérito da UnB (Universidade de Brasília)