Luiz Sérgio Henriques: Comunismo, tragédia e farsa

Hoje o comunismo vê-se reduzido a mísero artefato das modernas guerras de cultura

Clássico incontornável, dono ainda por cima de estilo ferino e inconfundível, Karl Marx começou seu estudo sobre o bonapartismo, este antepassado distante das autocracias modernas, com imagens que povoam nossa memória e, mais importante, ainda servem como instrumento analítico.

Segundo ele, momentos de transformação são capazes de promover singular “ressurreição dos mortos”. Lutero, por exemplo, espelhava-se no apóstolo Paulo, Cromwell embebia a revolução inglesa na linguagem do Velho Testamento, os revolucionários de 1789 viam-se às vezes como antigos romanos. Mas havia também acontecimentos e personagens que podiam irromper como drama ou tragédia e, em seguida, “voltar” como farsa – e neste caso incluía, como sabemos, Napoleão e seu sobrinho Luís Napoleão, respectivamente, um dos fundadores do mundo moderno e o medíocre articulador do golpe de 1851, objeto específico da análise marxiana no seu Dezoito Brumário.

O comunismo histórico foi um destes acontecimentos dramáticos, cuja força e persuasão, ao menos inicialmente, é inútil negar. Com efeito, a sociedade que surgiu na antiga União Soviética – com seu plano central baseado na expropriação violenta dos camponeses, uma brutalidade que então poucos viram ou avaliaram, bem como na industrialização em ritmo forçado – pareceu em vários momentos contrapor-se estavelmente às crises e aos desequilíbrios intrínsecos ao mundo liberal-democrático. Havia ainda recursos políticos e intelectuais à disposição do novo Estado e da utopia que encarnava, entre os quais a novíssima rede global de apoio constituída pelos partidos comunistas e o próprio impacto avassalador na atmosfera intelectual do tempo.

Tratou-se, na verdade, de uma “modernidade alternativa”, um desafio civilizatório, que, no entanto, aos olhos mais atentos logo revelaria uma irreparável incapacidade hegemônica. Nascidos de uma “grande guerra” e de uma guerra civil dentro do velho império dos czares, os traços definidores daquela modernidade estavam condicionados pela dupla circunstância bélica. A percepção de viver sob assédio nunca seria superada. A sociedade civil, esmagada por um bonapartismo “progressista”, não iria além de um estágio elementar e corporativo – diagnóstico gramsciano feito no calor da hora, pouco mais de duas décadas antes de a argúcia de Hannah Arendt identificar o fenômeno totalitário como uma das marcas definidoras do século 20 e nele incluir, sem perdão, o Estado soviético.

Fato denso e contraditório, e varrido de cena com a implosão de 1989, aquele tipo de socialismo de Estado um dia pareceu constituir o próprio horizonte do nosso tempo. Por isso, inspirou o escritor italiano Ignazio Silone a inventar uma anedota que cancelava atores e ideologias intermediárias. Segundo ele, não haveria ninguém mais na “luta final” a não ser comunistas, em esmagadora maioria, e ex-comunistas ressentidos e impotentes contra a marcha da História…

Hoje, havemos de convir que, originalmente tragédia ou drama, o comunismo vê-se reduzido a mísero artefato das modernas guerras de cultura, sem implantação numa realidade que não é mais a do capitalismo industrial e suas classes bem definidas. Dado o contexto de tais “guerras”, tendemos a rechaçar quase tudo como farsa e artifício. Parecemos assistir a uma contínua simulação de alarmes e advertências contra o “fantasma vermelho” – espectro que nem por isso é menos eficaz ou produtivo para os fins com que é criado.

Seja como for, as guerras culturais vieram para ficar e são capazes de alterar e até deformar as configurações ideológicas de toda uma sociedade. Moldam percepções de diferentes grupos sociais, modificam suas atitudes em sentido irracional, contribuem para aumentar conflitos a ponto de torná-los muitas vezes avessos à mediação política. Não podem ser tratadas como irrelevantes: crenças arraigadas, mesmo quando induzidas de modo fraudulento, valem tanto quanto forças materiais.

Descobrimos recentemente, por exemplo, que quase cinco em cada dez brasileiros têm medo de que o País se torne “comunista”. Ou que, sob o terceiro mandato do presidente Lula, o Brasil se torne “uma Venezuela”, como se não houvesse entre Chávez, Maduro e Bolsonaro mais do que imagina nossa vã filosofia e não fosse o caso de tratá-los como candidatos, ou ex-candidatos, a Bonaparte (o sobrinho). E mesmo a esquerda não está isenta de delírio. Com surpresa e apreensão, vemos dirigentes partidários importantes, inclusive do Brasil, dirigirem-se a Moscou, a buscar em Putin o farol para guiá-los numa hipotética – e bizarra – mobilização anti-imperialista.

O comunismo acabou, a esquerda continua. E também permanece a tarefa, invariavelmente inacabada, de construir um discurso minimamente unificado. Tal discurso deve rearticular, com a coerência possível, a ambígua face da política, simultaneamente material e simbólica. Se ao menos as forças decisivas da esquerda agirem com realismo, poderão saltar tragédias e evitar farsas, situações, todas elas, que sempre desmoralizam por igual. (O Estado de S. Paulo – 15/04/2023)

Luiz Sérgio Henriques, tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das obras de Gramsci no Brasil

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