Míriam Leitão: A luta da mulher por igualdade

Depois de um governo hostil às mulheres, país agora tem uma agenda de combate à discriminação de gênero

Hoje é o dia seguinte. Ontem, falou-se o tempo todo sobre a mulher a partir dos ângulos mais diversos. As decisões que o governo anunciou foram excelentes. Do projeto sobre equiparação salarial ao incentivo às meninas na ciência, do dia Marielle Franco de combate à violência política às medidas para a dignidade de mulheres e meninas pobres no seu período menstrual. A questão de gênero tem enorme complexidade, ela se desdobra em várias frentes de problemas a enfrentar. Nos outros 364 dias, mulheres passarão por dores e dificuldades, muitas morrerão vítimas de feminicídio, mas o país pelo menos tem agora uma agenda de combate à discriminação da mulher.

O alívio de ontem era ver que no lugar da ministra da mulher defensora da submissão da mulher ao homem, temos a ministra Cida Gonçalves alertando que há um feminicídio a cada sete horas e que “isso tem que parar”. Em vez de ter um presidente que diz que mulher tem que ganhar menos porque engravida, o presidente Lula afirma que “nada, absolutamente nada, justifica a desigualdade de gênero”. Em vez de haver um veto presidencial à distribuição de absorventes femininos às mulheres e meninas carentes, temos a aprovação dessa política. É a agenda do país voltando ao ponto onde deveria estar, onde já esteve, e do qual se desviou quando caímos no túnel fundo do retrocesso.

O governo anterior hostilizava a mulher. Bolsonaro nos ofendia. Muitas mulheres foram pessoalmente alvo das suas grosserias. Cada pessoa atingida sabe as cicatrizes que carrega do tempo da selvageria governamental. Além de escolher suas vítimas, Bolsonaro também fazia o ataque indiscriminado e coletivo ao gênero feminino. Contudo, Bolsonaro não está só. Milhões no Brasil descarregam na mulher, das formas sutis até as mais violentas, o peso do preconceito. Essas agressões aumentam quando são autorizadas pela palavra de um governante.

A proposta de uma legislação que puna a deliberada desigualdade salarial entre pessoas que desempenham as mesmas funções e com as mesmas qualificações foi defendida durante a campanha pela senadora Simone Tebet. Ela fez um programa econômico liberal, mesmo assim continha esse projeto. A luta pelo fim da discriminação contra a mulher no mercado de trabalho é um avanço civilizatório.

Haverá muitos argumentos contrários, com o pretexto de que estão ajudando a mulher. Dirão, os beneméritos, que não pode haver tal lei porque o empregador não dará a vaga à mulher, para não correr o risco de uma ação trabalhista. Que isso aumentará a insegurança jurídica, prejudicando exatamente a mulher. São falsos argumentos. Quando foi aprovada a licença maternidade, ou quando ela foi estendida também se usou essa tese. Quando se discutia as cotas raciais para a universidade pública no Brasil, alguns diziam que ela provocaria o racismo, como se ele já não fosse uma das tristes raízes do Brasil. Até no debate da abolição era possível encontrar as vozes que diziam que os escravizados ficariam desamparados. Eles ficaram sim, mas a solução seria criar políticas públicas de reparação e não a manutenção da escravidão.

Há uma longa caminhada pela frente e a desigualdade de gênero não terminará por concessão de governo algum. Foram as sufragistas que garantiram o direito de voto, aprovado há menos de um século. O 8 de março é resultado de um movimento de trabalhadoras. A lei Maria da Penha veio do martírio de mulheres e da luta contra a violência. A pressão do movimento feminista levou a avanços, mas eles acontecem principalmente nas administrações democráticas que são capazes de ouvir.

A capacidade multiplicadora de um governo é enorme. Em cada órgão estão sendo estudadas medidas ou criadas instâncias de debates de inclusão e diversidade. No Itamaraty, onde ontem entrevistei a embaixadora Maria Laura da Rocha, secretária geral do Ministério, foi designada uma alta representante para as questões de gênero, foi lançada uma campanha para estimular mais mulheres na carreira e voltam os comitês de discussão de temas de gênero e raça.

Negar a existência de qualquer problema, sempre foi a estratégia para eternizá-lo. Há engrenagens que perpetuam as situações de privilégio e discriminação. O debate, a visibilidade, a luta sempre pavimentaram o caminho de redução de injustiças e desigualdades. Nesse 8 de março, algumas pedras se moveram na direção certa. Hoje é o dia seguinte. E em todos os dias seguintes haverá trabalho a fazer na luta da mulher por igualdade. (O Globo – 09/03/2023)

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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