Fernando Gabeira: Gasolina: não são só os 47 centavos

É difícil explicar por que o Brasil não tem um transporte público confortável, eficaz e pontual. Faltam recursos? Não creio

O governo federal voltou a cobrar imposto sobre a gasolina. Houve muita discussão, escrevi artigo, fiz inúmeros comentários. Parecia incoerente que um governo voltado para os pobres favorecesse motoristas, e não pedestres; não combatesse mudanças climáticas e estimulasse o uso de combustível fóssil; e finalmente abrisse mão de R$ 29 bilhões na pindaíba em que se encontram as contas públicas?

Mas toda essa discussão me pareceu um pouco limitada, difícil torná-la atraente para um público maior. Pensei então no filme “Tudo em todo lugar ao mesmo tempo”. Sua técnica de unificar muitos universos talvez fosse de utilidade para transformar os 47 centavos em algo mais amplo.

Um dos mundos que deveriam ser chamados ao centro da cena é o transporte público. É difícil explicar por que o Brasil não tem um transporte público confortável, eficaz e pontual. Faltam recursos? Não creio. A única pista que explica essa lacuna é a proximidade das empresas com os políticos.

O universo da indústria automobilística também padece dessa proximidade com os políticos, dessa força estranha que a mantém numa zona de conforto, mas, paradoxalmente, em declínio.

Leio que o Brasil é rico em lítio e produz o mineral em grande escala no paupérrimo Vale do Jequitinhonha. Se as reservas são tão grandes, aquilo ali pode ser tão promissor quanto o pré-sal — lembram-se dessa entidade mística que resolveria todos os problemas do país?

Pelo menos o lítio favoreceria a produção dos carros elétricos no Brasil e, em último caso, como é um mineral versátil, poderia ajudar no controle da doença bipolar e de outros problemas mentais.

Por falar em carro: faz 15 anos que não temos carro em casa. Usamos bicicletas para o transporte diário e táxi quando é preciso ir mais longe. Não sou ingênuo a ponto de ver nisso uma solução ampla. Um homem que passou por aqui para colher material para exame de laboratório tem uma condição diferente. Acorda às 4h na Baixada Fluminense, trabalha de casa em casa até meio-dia e, depois do almoço, usa o carro como motorista de Uber.

Para muitas pessoas, o carro ainda é um instrumento de trabalho indispensável. Mas a verdade é que, em certos setores, sobretudo na nova geração, ele não tem mais o glamour do passado.

Nos anúncios de TV, o carro novo era sempre uma sugestão de encontro amoroso, uma espécie de ponte para lindas mulheres. Hoje, o apelo maior é para a aventura. Mesmo nesse campo, observa-se um crescimento grande de empresas de aluguel. É mais prático alugar de vez em quando do que ter um carro em casa.

Há muitos anos, em alguns países europeus, começou a prática de carros compartilhados. Um mesmo carro serve a diferentes donos, de acordo com uma agenda elaborada a cada mês.

São muitas as linhas de abordagem, mas discutimos o aumento de gasolina com a mesma tranquilidade com que tratamos um fenômeno natural, como se fôssemos a cada novo ano despejar novos fumegantes carros e caminhões nas ruas do Brasil, e isso pudesse continuar por décadas. Alguma coisa vai nos parar: o aquecimento global, o engarrafamento, as doenças respiratórias.

Um universo que ainda cabe neste curto texto é o planejamento urbano. Não se pode mais trabalhar, fazer compras e morar em lugares diferentes. Os grandes prédios de escritórios vazios nos centros das cidades deveriam nos inspirar. A pandemia pelo menos mudou alguma coisa. O mínimo que podemos fazer é aprender com ela.

Compreendo a importância imediata da discussão sobre o aumento da gasolina. As pessoas querem saber que efeito as medidas terão no bolso. Mas, sempre que pudermos, será necessário discutir que repercussão tudo isso terá no futuro. O ritmo de debate no Brasil é um ritmo punk: para ele, não há amanhã. (O Globo – 06/03/2023)

Fernando Gabeira, jornalista e escritor

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