A governança regulatória no Brasil mostrou-se resiliente no passado, mas há incerteza agora
A crítica populista à democracia representativa tem longo pedigree à direita e à esquerda. Os que atuam entre o povo e os governos são seu alvo: os checks and balances, agências reguladoras independentes, Bancos Centrais, Supremas Cortes, instituições supranacionais (União Europeia) etc. Tudo em nome de um majoritarismo iliberal e um suposto déficit democrático. Expressa-se no questionamento recorrente sobre quem teria eleito os titulares dessas instituições.
Enfim todos os agentes que se antepõem ou limitam a expressão majoritária da vontade popular, que o líder populista supostamente encarnaria. O líder é símbolo e se define pelo que é, não pelo que faz. Não há nesses modelos espaço para a “accountability” democrática: punir e premiar o desempenho de líderes populistas seria uma contradição em termos. Se falham, é porque forças ocultas lhes obstaculizam a ação.
O imbróglio recente envolvendo Lula e presidente do Banco Central se inscreve nesta dinâmica mais ampla e não começou agora: é um padrão. Em 2003, Lula atacou as agências reguladoras criadas no governo FHC e prometeu mudar o papel dos órgãos. “O Brasil foi terceirizado. As agências mandam no país.” Segundo ele, assumir o governo era como “casar com viúva”: com o tempo, vai se descobrindo “manias e defeitos” que antes não eram sabidos. E ameaçou: “tudo isso [as decisões tomadas pelas agências sem interferência do governo] vai ser mudado, mas que é preciso tempo para mudar”.
Não conseguiu.
Lula atacou reiteradamente o então presidente da Anatel, que renunciou ao cargo um ano antes do final de seu mandato. O ataque do governo foi concertado: Dilma, então ministra, interferiu na Aneel. A estratégia de neutralização das agências envolveu em muitos casos a não nomeação de diretorias, que desfalcadas não logravam atingir o quórum necessário para decisões, como mostramos no artigo em coautoria com colegas, Political interference and regulatory resilience, publicado em Governance and Regulation, 2019.
No trabalho demonstramos —com evidências empíricas robustas— que os ataques não lograram alterar a governança regulatória no país: a institucionalidade mostrou-se resiliente. (O mesmo aconteceu sob Bolsonaro quando a Anvisa foi objeto de ataques do presidente). A fonte da resiliência é a estrutura político-institucional mais ampla do país que garantiu a credibilidade aos arranjos setoriais existentes. Será provavelmente muito barulho para nada? Sim, mas há um alerta amarelo: um jabuti criando conselhos que esvaziam as agências reguladoras. Estará Lula 3 dobrando a aposta em um contexto em que é francamente minoritário no Congresso?(Correio Braziliense – 13/02/2023)
Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA)