Cristiano Romero: Todos contra o Banco Central. Mais uma vez

Não se deve duvidar da gesticulação: Lula quer Nova Matriz Econômica de volta

A campanha movida contra a autonomia formal do Banco Central e a permanência de Roberto Campos Neto no comando da instituição jogará o Brasil numa nova crise econômica. Esta, na verdade, já começou e está refletida na deterioração das condições financeiras.

Durante o período de formação de governo, Lula, segundo apurou o titular desta coluna, deixou claro, em conversas com alguns assessores, que seu desejo é reeditar a Nova Matriz Econômica (NME). Esta consiste numa série de medidas formuladas por economistas descontentes com o arcabouço de política econômica que começou a ser implantado em meados de 1999, primeiro ano do segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso.

Mesmo contra a vontade da maioria dos economistas do PT, Lula herdou de bom grado, em 2003, o chamado tripé que, na gestão FHC, se mostrou eficaz para estabilizar a inflação, dar solvência às finanças públicas e reduzir a vulnerabilidade do país a crises externas. O tripé consistia do regime de metas para a inflação, da geração de superávits primários (conceito que exclui do resultado fiscal a despesa com juros da dívida) e do sistema de câmbio flutuante.

Numa pequena digressão, necessária para nos localizarmos no tempo, o tripé foi adotado para salvar o Plano Real. Por quê? Porque, quando a nova moeda foi lançada, em julho de 1994, o governo não dispunha de outra âncora para controlar a inflação, a não ser de um montante de US$ 40 bilhões em reservas cambiais, na época considerado suficiente.

A melhor âncora para a estabilidade de uma economia, digamos, a ideal, é a de natureza fiscal. Se o setor público gasta menos do que arrecada em impostos, ou, no limite, a mesma quantia, a poupança gerada pelas famílias (para financiar, por exemplo, a aposentadoria futura) e peças empresas (para bancar investimentos que assegurarão o crescimento contínuo de sua capacidade de produção) é direcionada ao financiamento do setor privado.

Num contexto como o mencionado, a taxa de juros de referência da economia, que espelha o custo de financiamento do governo central, é naturalmente baixa porque há mais recursos disponíveis para o crédito. Portanto, quando o governo de um país é responsável do ponto de vista fiscal, os juros pagos por consumidores e empresários, ao tomar crédito nos bancos, são menores. Como se vê, a disciplina fiscal é bom negócio para todos os viventes de uma sociedade – e o seu oposto, acreditem, é muito pior para os pobres.

Em outras palavras, quando o governo não necessita recorrer à poupança doméstica para bancar os gastos públicos, sobra mais dinheiro para financiar coisas como a compra da casa própria do trabalhador e o investimento das companhias em máquinas, equipamentos e construção, sem o qual o Produto Interno Bruto (PIB) não cresce.

Antes que alguns leitores apedrejem o mensageiro, cabe observar que, sim, não há Estado soberano neste planeta que gaste apenas o que arrecada em tributos. Todos vão ao mercado tomar dinheiro emprestado. Hoje, as dívidas dos países ricos são bem maiores que as das nações em desenvolvimento e de mercados emergentes. Apesar disso, os juros lá são consideravelmente inferiores aos que conhecemos aqui.

Há várias razões para esse descompasso e nem todas são aceitáveis. Acreditar que tudo funciona direitinho nas economias avançadas e que, por isso, eles seriam mais virtuosos que os habitantes que vivem ao sul do Equador é tolice. Ricos têm, por definição, poder para mudar até a lei da Gravidade. Mas este é um dado da realidade que não deve ser desprezado. De toda forma, um dos fatores que levam nossa taxa de juros a atingir alturas maiores que as alcançadas por foguetes da Nasa somos nós mesmos. Como assim?

Ora, a dívida pública é tomada por governos eleitos diretamente por nós. Quando nos sentamos à mesa de um bar e, depois de uns goles, damos opiniões como, entre outras, “foi um absurdo o governo acabar com o risco de 100% do Tesouro nos casos de inadimplência do Fies”, “FHC, Lula e Dilma deveriam ser enforcados em praça pública por terem acabado com a aposentadoria integral dos funcionários públicos e a promoção dos militares no momento de irem para a reserva”, “acabar com as férias remuneradas de dois meses de juízes e procuradores é atentar contra a independência dos poderes” e “acabar com a TJLP e os empréstimos subsidiados do BNDES a grandes empresas é seguir ordens que vêm da Casa Branca para manter a indústria brasileira sem condições de competir com as estrangeiras”.

Esse pensamento, segundo o qual, cabe ao Estado prover recursos para todos, inclusive, os ricos e os remediados, faz a festa dos citados, os donos do poder. A natureza patrimonialista da sociedade brasileira explica os 11 calotes aplicados pelos governos no pagamento da dívida pública, desde a instauração da República. É uma das principais explicações do elevado custo de captação do Tesouro, que se reflete em cadeia nos juros cobrados das famílias e das empresas.

O real foi lançado sem âncora fiscal. Na verdade, a situação fiscal, com a queda brusca e drástica da inflação, piorou porque os gastos dali em diante não foram corroídos pela perda de valor da moeda. Por isso, adotou-se regime de câmbio quase fixo para ancorar os preços – o mundo inteiro tinha feito isso. O problema é que a indisciplina fiscal lá fora e aqui pôs esse regime cambial em xeque.

No início de 1999, o dólar disparou no Brasil. Em julho, implementou-se o tripé e este funcionou bem. Em 2011, Dilma Rousseff decidiu trocá-lo pela Nova Matriz. Isso levou o país a uma profunda crise. Michel Temer restabeleceu o tripé e a taxa de juros caiu para 2% ao ano. A pandemia ressuscitou a inflação aqui e no mundo. Lula derrotou Bolsonaro com o apoio inclusive de velhos adversários, o país encheu-se de esperança e, agora, ignorando o que nos levou à tragédia, quer reeditar a NME. (Valor Econômico – 16/02/2023)

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