Luiz Werneck Vianna: A nossa Noite dos Cristais e um Tribunal de Nuremberg

É imperativo levar aos tribunais todos os que atentaram por ações ou omissões contra a nossa incipiente democracia em 8 de janeiro

O poeta Ferreira Gullar costumava dizer que seus poemas nasciam do espanto a que era acometido diante dos incidentes da vida, daí lhe viria a inspiração em que o inesperado deflagrava nele o impulso para fixar num poema a sua percepção do que sentia sobre a experiência vivida. Gullar nos deixou uma obra genial, mas o tamanho do espanto que sentimos com os fatos calamitosos desse inesquecível dia 8 de janeiro que não abandonam a nossa memória não nos têm conduzido às sendas da criação, e já se ouvem vozes que nos sugerem ir em frente, passar um pano e voltarmos ao regaço do cotidiano de sempre.

O dia 8 de janeiro foi a data da profanação do que havia de sagrado entre os brasileiros no culto de suas tradições e seu projeto de futuro, sempre reiterado de seguir em frente na realização dos ideais civilizatórios de que Brasília, saída das mãos de Oscar Niemeyer e de Lucio Costa como projeto sinalizador da utopia brasileira de realizar nos trópicos pela obra de um país miscigenado uma cultura democrática e singular. Os palácios de Brasília, as sedes dos três poderes republicanos, não eram separados das vistas do público por muros, mas por vidros a fim de afirmar os ideais da transparência do poder. Neste famigerado dia 8 abateram-se as vidraças dos palácios de Brasília com a mesma fúria com que as hordas nazistas, em 1938, levaram a efeito um pogrom num bairro judeu destruindo suas lojas.

Seu propósito era o de colapsar a sede do poder democrático recentemente investido a fim de impedir a realização dos seus fins declarados de ruptura com uma história nascida da relação monstruosa entre o latifúndio e a escravidão, que preservada em seus fundamentos de exclusão, encontrou lugar nos processos de modernização autoritária que nos trouxeram aos dias de hoje. A tentativa criminal foi abortada, mas antes disso ela conspurcou e maculou o que dava sentido à nossa história e alento para seguir seu curso.

Os alemães, depois de 1945 com a derrota do nazismo, acertaram suas contas com os sicários que a tinham dissociado da sua rica história cultural no Tribunal de Nuremberg. Aqui, e pelas mesmas razões, é imperativo levar aos tribunais todos os que atentaram por ações ou omissões contra a nossa incipiente democracia. Qualquer tergiversação nessa linha deixa os flancos abertos para recidivas do fascismo que já encontrou as brechas em nossa sociedade para se infiltrar, que não se restringem às ocupações de posições de poder, mirando com igual intensidade as interpretações sobre o sentido da nossa história que vinham animando a construção da nossa democracia, do que foi exemplar a elaboração da Carta de 1988. Tais interpretações que foram se sucedendo e se retroalimentando desde José Bonifácio, Euclides da Cunha e tantos outras que imediatamente as seguiram, encontraram ressonância na ensaística moderna como nas obras de Sérgio Buarque de Holanda, Raimundo Faoro, Roberto Schartz, Rubem Barbosa Filho, para citar apenas alguns, que tentaram desvendar quais poderiam ser os rumos para uma sociedade cujo ponto de partida, o atraso ibérico, lhe era tão pouco propício. Cada qual, a seu modo, interpretava o nosso destino como vocacionado para uma intervenção de ruptura com o nosso passado.

O avanço continuado do moderno, antípoda do processo de modernização com que a ordem burguesa abriu seu caminho entre nós pelo autoritarismo político e a exclusão social, pôs em cheque a reprodução do passado, sustentado na ordem burguesa pelos seus vínculos com a ordem patrimonial que lhe garantia no plano da política. O regime Bolsonaro significou em todos os sentidos, político, cultural, econômico, um levante das forças do passado a fim de obstar a passagem do moderno, e foram elas que estavam presentes nos acampamentos em que se gestava o assalto à democracia brasileira, quer financiando suas ações, quer nas concepções dos seus movimentos, quer arrostando como massa de apoio setores retardatários da sociedade.

Esconjurar nosso espanto diante da calamidade a que fomos expostos, saída das próprias entranhas da nossa sociedade, é obra coletiva a ser desencadeada por um julgamento público, quando se investigue as origens presentes e remotas do mal que nos ronda, sempre com a inspiração de que jamais o dia 8 de janeiro ocorra mais uma vez.

As ciências sociais têm um lugar de importância nesse Tribunal de Nuremberg, e seu papel é o de encontrar explicações para os espantosos acontecimentos que abalaram a república e os comportamentos igualmente espantosos dos seus personagens. (Democracia Política e novo Reformismo – 26/01/2023)

Luiz Werneck Vianna, Sociólogo, PUC- Rio

Leia também

Plano era matar Lula, Alckmin e Moraes

As evidências colhidas por STF e PF apontam que o segundo documento-chave do plano, intitulado “Punhal Verde Amarelo”, foi elaborado pelo general Mario Fernandes.

Lula ri por último na reunião do G20

O presidente brasileiro defendeu a taxação de operações financeiras de super-ricos, para financiar o combate às desigualdades.

Trump joga Lula nos braços de Xi Jinping

Vitória do republicano nas eleições americanas aproxima o petista...

Motta unifica o “Centrão” com desistência de Brito

Consolidou-se a hegemonia do chamado Centrão na Câmara, mas é um erro tratar as forças políticas de centro e centro-direita como um bloco monolítico.

Fim da escala 6 x 1 mobiliza redes e pressiona Lula

O governo está na berlinda, principalmente o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que criou um partido e chegou à Presidência para defender os trabalhadores.

Informativo

Receba as notícias do Cidadania no seu celular!