Fernando Exman: A quem interessa uma caserna agitada

Deve-se diferenciar erros individuais da atuação do Exército

A incerteza era tamanha no funesto dia 8 que um integrante da cúpula do Congresso foi assertivo ao ser alcançado, pelo telefone, por um interlocutor do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Diga ao presidente que aceite tudo, menos uma GLO”, recomendou, com veemência, o parlamentar.

Àquela altura, um gabinete de crise improvisado a cerca de 800 quilômetros de Brasília já discutia como seria dado o contragolpe que retomaria o controle da sede dos três Poderes. Lula visitava Araraquara, município do interior de São Paulo atingido por fortes chuvas, quando a crise eclodiu: logo começou a ser torpedeado com sugestões de como deveria reagir e, entre essas propostas, estava exatamente a decretação de uma missão de garantia da lei e da ordem – ou, como se diz no jargão, uma GLO.

Uma operação desse tipo só pode ser iniciada por determinação expressa da Presidência da República. Está prevista na Constituição e há diversos exemplos bem-sucedidos, inclusive na Esplanada dos Ministérios.

Em maio de 2017, o então presidente Michel Temer requisitou o uso das tropas depois que os ministérios da Agricultura e da Fazenda foram atacados por vândalos que protestavam contra o governo e tentavam, pela força, barrar as reformas trabalhista e da Previdência. Temer revogou aquela GLO no dia seguinte, quando já estavam cessadas as ameaças aos prédios públicos localizados no centro de Brasília.

Os estragos impressionaram. Mas nada se compara ao que ocorreu no dia 8 de janeiro.

As dependências do Congresso, Palácio do Planalto e Supremo Tribunal Federal (STF) estavam ocupadas por terroristas, em uma ação orquestrada. O quebra-quebra era generalizado, mas os policiais militares escalados para a missão nada faziam.

Induzidas ao erro por integrantes do governo do Distrito Federal, os quais haviam assegurado que ninguém acessaria a Esplanada naquele fim de semana, as equipes de segurança do Legislativo e do Judiciário baixaram a guarda. Estavam em número reduzidíssimo quando bolsonaristas radicais avançaram em direção à Praça dos Três Poderes, depois de serem escoltados pela Polícia Militar do DF em uma marcha cujo início foi o acampamento instalado em frente ao quartel-general do Exército.

No Executivo, tudo soou estranho. Conforme o próprio presidente passou a dizer em público, suspeitou-se de conivência daqueles que deveriam proteger o Palácio do Planalto – o Batalhão de Guarda Presidencial e o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência (GSI).

É preciso pontuar que investigações ainda estão em curso. De qualquer forma, a hipótese de sabotagem pesou no cálculo político feito pelo núcleo do governo Lula naquelas horas cruciais. Acabou optando-se por uma intervenção pontual, com o objetivo de restabelecimento imediato do controle da situação: apenas a área de segurança pública do Distrito Federal teria um interventor, e este deveria ser um civil.

Pela legislação, uma GLO precisa ter tempo determinado e área restrita de atuação. E ela só deve ser decretada depois de esgotados os instrumentos policiais destinados à preservação da ordem pública. Sob a ótica de integrantes do Executivo, ainda estavam disponíveis os meios necessários para esta finalidade na própria estrutura do governo do DF.

Além disso, não se tinha confiança de que conseguiriam restringir a GLO a um período exíguo e decretar seu fim, assim como fez Temer em 2017, com rapidez. Existia o risco de a medida inflamar ainda mais os radicais.

As GLOs estão previstas pela Constituição em seu artigo 142, justamente aquele interpretado de forma equivocada por quem, tentando justificar o injustificável, ou seja, uma intervenção militar, quer colocar as Forças Armadas como poder moderador da democracia.

Nas cúpulas dos Poderes, é sabido que essa visão se espalhou por setores políticos extremistas e entre militares da reserva.

Um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) costuma contar como se deu conta de que a equivocada visão não estava restrita a grupos de WhatsApp. Certo dia, relata, estava ele em uma conversa amena e informal com um influente general da reserva, quando foi perguntado sobre a sua opinião a respeito da tese. Sua reação imediata foi gargalhar, mas a cena perdeu a graça quando percebeu que, do outro lado, falava-se sério.

Oficiais da ativa, porém, rechaçam a tese. E é isso o que importa.

A insatisfação de Lula levou à substituição no comando do Exército, uma operação capaz de evitar que o ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, continuasse se desgastando ao tentar intermediar uma relação marcada pela desconfiança. O método utilizado pelo governo, por outro lado, ainda provoca ressentimentos na caserna: um comandante foi demitido num fim de semana, de surpresa e às vésperas de passar por uma cirurgia.

Fontes militares argumentam que ninguém da ativa se “arvorou” a circular pelos acampamentos instalados em frente aos quartéis e que, apesar de barulhentos, integrantes da reserva não mandam em nada. Em outras palavras, destacam, não há instabilidade institucional porque o Exército tem controle total da tropa.

O risco, porém, é que seja alimentado na caserna um eventual sentimento de perseguição. No limite, isso poderia exacerbar os humores e gerar um descontrole de manifestações políticas públicas na ativa, o que até agora, ressalte-se, não aconteceu. Era justamente o que o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) pretendia promover.

O discurso legalista do general Tomás Miguel Ribeiro Paiva, divulgado horas antes de ser anunciada a troca no comando do Exército, levou-o ao mais alto posto da instituição. Ele recebeu a missão sob a expectativa de que “precisa e vai fazer o que deve ser feito” em relação ao que ocorreu no dia 8, mas com a promessa de que terá autonomia para conduzir a Força Terrestre. É um começo para tentar reconstruir as relações entre o atual governo e o Exército, um órgão de Estado que tem missões constitucionais e deve ter os instrumentos necessários para cumpri-las. O governo Lula deve evitar a armadilha de confundir erros individuais com a atuação institucional da Força. (Valor Econômico – 25/01/2023)

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. 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O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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