Luiz Sérgio Henriques: A democracia como valor universal

Trata-se de reivindicar a inserção no Ocidente democrático, sistema de formas políticas e sociais assentadas tem tolerância, pluralismo e direitos humanos

Consigna dos anos 1970, quando dávamos partida à superação do regime ditatorial, a “democracia como valor universal” é uma dessas frases que voltam poderosamente à cabeça nos momentos mais difíceis, nos quais a roda da História – se é que ela existe – não só emperra, como parece querer girar ao contrário. A frase teve uma origem singularíssima que por certo a torna ainda mais pertinente agora. Para os que porventura não sabem, ela nasce do universo comunista já na sua fase terminal, em que não havia mais dúvida razoável sobre a tragédia do stalinismo e, de algum modo, tentava-se o acerto de contas e testava-se a renovação “eurocomunista” – que, afinal, não veio, deixando toda uma tradição arquivada nos desvãos, muitas vezes sombrios, do século passado.

No entanto, como um legado inescapável, a universalidade democrática então proclamada escapou da sua origem circunscrita e há décadas se apresenta imperativamente para as esquerdas não comunistas ou pós-comunistas, especialmente as que, surgidas em sociedades dotadas de alto grau de complexidade, logo demonstraram vocação de governo, sem se limitarem ao protesto radical. É o caso evidente do Brasil e da esquerda petista, legitimamente vitoriosa na maioria das disputas presidenciais desde 1989, inclusive na mais recente.

A vitória de 2022, aliás, suscitou esperanças de reversão de quatro anos de atraso político e assalto ao bom senso, mas veio também rodeada de nuvens espessas. As promessas de revitalização democrática, retomando a inspiração inscrita na Carta de 1988, logo se chocaram com o golpismo, velho e conhecido fantasma da República. Com certo assombro descobrimos que, entre as muitas complexidades do País, está o fato de que o passado não passa ou então passa com irritante lentidão. E a ameaça de tutela é uma dessas sombras que se projetam sobre a vida civil e a representação política, pretendendo, não se sabe a que título, submeter a sociedade a um estatuto humilhante de menoridade.

Erros reais ou supostos da força hegemônica – e nessa altura não se discute mais o papel preponderante do PT nas sucessões presidenciais e no sistema partidário – se pagam duramente. Vitórias eleitorais frequentes podem dar indevida sensação de onipotência ou presunção de superioridade moral. Não raro, reivindica-se para o líder o estatuto de homem providencial, denotando, no fundo, uma dificuldade para alternar ou substituir figuras e grupos dirigentes. Sem propor simetria abusiva, mas tentando indicar um problema real, notemos que assim se abre o espaço para que as forças mais retrógradas criem demagogicamente os próprios “mitos” com a borra da História, de modo que a política se empobrece e se rebaixa a roleta russa. Dessa última vez escapamos por menos de 2% dos votos. Ou por una cabeza, como no tango.

A união dos Poderes republicanos e a ampla coalizão partidária que se seguiu, quase por imposição dos fatos, à intentona da extrema direita apontam a via de saída do beco em que nos metemos. Na verdade, a divisão da sociedade em blocos antagônicos, em que um se inclina em maior ou menor grau a negar os valores constitucionais, é o caminho certo da ruína comum. Desta constatação singela – metades irreconciliáveis não constituem uma comunidade política – devem se nutrir os setores mais lúcidos da democracia brasileira, agindo com coerência a partir daí.

Desagregar o bloco político-eleitoral bolsonarista é a tarefa posta para os próximos anos, cabendo a esse respeito não mais do que algumas poucas indicações. A primeira delas é que não se tratará de um processo automático, que caminhará pelas próprias pernas sem que os demais atores ajam com paciência e serenidade. Há mudanças profundas na nossa sociedade – o envelhecimento da população ou o crescimento exponencial dos evangélicos, por exemplo – que é preciso quantificar, projetar e compreender. Outra indicação é que tais mudanças não necessariamente acarretam o fortalecimento do extremismo, embora seja improvável que a massa dos evangélicos – para dar um segundo exemplo – passe de armas e bagagens para a centro-esquerda ou a esquerda. A boa solução virá, portanto, não de um só líder ou de um só partido, mas de um sistema partidário estruturado em que haja lugar para forças de direita e centro-direita dispostas ao jogo constitucional.

Trata-se, no fundo, de reivindicar para nosso país a plena inserção no Ocidente democrático – um conceito que nada tem de geográfico nem se limita à repetição de ritos e instituições de países ditos desenvolvidos. Antes, ele corresponde a um sistema articulado e flexível de formas políticas e sociais assentadas na tolerância, no pluralismo de valores e nos direitos humanos em todas as suas dimensões. E daí, precisamente, retira sua aspiração à universalidade ou, numa definição menos eloquente, à condição de barreira, sempre frágil e necessitada de reparos, contra a fúria destrutiva que de tempos em tempos acomete as sociedades, como ainda há poucos dias pudemos ver entre atônitos e horrorizados. (O Estado de S. Paulo – 15/01/2023)

Luiz Sérgio Henriques, tradutor e ensaísta

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