Fernando Gabeira: A ditadura da realidade

A superstição domina as mentes quando não se preocupam mais em distinguir fatos de notícias falsas

‘Abaixo a ditadura da realidade.’ Este cartaz numa charge da imprensa francesa sobre os eventos no Brasil diz muito para mim.

Na semana do tsunami em Brasília, escrevi um artigo prevendo os rumos da extrema direita. Examinei as possibilidades de uma evolução como na França ou mesmo na Itália. Concluí, entretanto, que o modelo que seguia era do trumpismo americano.

A influência da extrema direita americana é muito grande por aqui. Já é falta de imaginação imitar a tomada do Capitólio. Não sei o que dizer sobre copiar uma experiência claramente fracassada.

Deniers, esse é o nome usado para descrever os extremistas americanos. Negacionistas como os brasileiros, que negam o aquecimento global, a pandemia, os benefícios da vacina e o resultado das eleições.

Nada me parece mais claro na luta contra a ditadura da realidade do que a frase de uma das detentas em Brasília:

— Estão nos dando marmitas de prisioneiros.

Presa, ela se surpreendeu com a comida de preso e na penitenciária Colmeia vai achar que as janelas gradeadas parecem uma prisão e que os uniformes sugerem que não têm liberdade de usar a própria roupa.

Uma das minhas interrogações sobre o movimento extremista é exatamente esta: por que se afastam tanto da realidade e, quando se dão conta dela, ficam tão revoltados?

A hipótese com que trabalho, inspirada numa frase de Carl Sagan, é que a superstição domina as mentes quando não se preocupam mais em distinguir fatos de notícias falsas.

Eles estão sempre esperando um milagre em 72 horas, porque acham que esse é o tempo que Cristo levou para ressuscitar. Estão sempre confiando em nebulosos órgãos internacionais, sempre analisando os gestos de Bolsonaro como mensagens cifradas: ele parou diante de pilhas num supermercado, sinal de que devemos nos preparar para a luta.

Logo após as eleições, a mensagem de uma senhora dizia:

— Menina, você não sabe que o Nine morreu? Estão usando um sósia no lugar dele.

Sou favorável a processos transparentes, mas o que leio a respeito de Alexandre de Moraes é assustador e mostra que o ministro precisa se proteger: “Se você vier a Itaituba, vou arrancar e comer seu coração”. Se Alexandre reagir, é inevitável a resposta: mas e o direito de livre expressão?

Por essas razões, estou revendo minhas análises. Minha tese é que o gênio não volta à garrafa, e este movimento dificilmente será absorvido por uma direita clássica.

As categorias exclusivamente políticas não dão conta de compreendê-los. Não tenho a pretensão de explicá-los em poucas linhas. Mas, quando a realidade deixa de ser um parâmetro para a discussão, é necessário buscar outros argumentos.

Nas redes, o grupo detido momentaneamente na Academia de Polícia era apresentado como um campo de concentração moderno. A cada instante, morria alguém na narrativa dos apoiadores. Num dos vídeos, um jovem diz:

— Morreu uma mulher hoje.

Uma senhora de passagem responde:

— Uma não, duas.

Durante toda a semana, eles se preparam para uma “festa da Selma”. Pesquisaram na rede as revoltas em Bangladesh, pois achavam que bloqueariam algumas refinarias, ocupariam os três prédios do poder, e o Brasil inteiro cairia aos seus pés.

Entendo seu raciocínio. Nele, a maioria não votou em Lula, houve uma fraude. Logo, qualquer movimento colocará todo o país em estado de rebelião.

Vale a pena estudar atentamente todos os 1.500 depoimentos dos detidos em Brasília, entrevistar longamente os líderes. Eles quebraram tudo e depois cantaram hinos religiosos. É preciso uma nova estratégia. Navegamos em mares nunca dantes navegados. Talvez reler “Os sertões” e aprender um pouco, apesar das diferenças, com algumas referências históricas. É um grande desafio, pois esperam apenas um sinal, qualquer sinal para entrar na sua terra prometida. (O Globo – 16/01/2023)

Fernando Gabeira, jornalista e escritor

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