Malu Gaspar: Por que relatório das Forças Armadas deixa mundo político em alerta

Preocupação de líderes governistas é que documento seja usado por Bolsonaro para manter nas ruas os manifestantes que pedem golpe militar

A possibilidade de Jair Bolsonaro utilizar o relatório sobre as conclusões do relatório das Forças Armadas sobre o processo eleitoral, que deve ser divulgado nesta quarta-feira, colocou o mundo político em alerta.

Adversários, aliados e até mesmo ministros próximos do presidente da República estão no escuro sobre o que ele deverá fazer quanto ao relatório, que vai marcar a última etapa do embate entre o bolsonarismo e a Justiça Eleitoral a respeito da segurança das urnas e do sistema eletrônico de votação.

No TSE, expectativa é a de o relatório traga conclusões semelhantes ao que os militares já escreveram num ofício enviado ao ministro Alexandre de Moraes, presidente do tribunal, logo após o primeiro turno.

Na mensagem, os militares diziam que o número de voluntários que participaram do teste de integridade das urnas conduzido em um projeto piloto junto com o TSE foi insuficiente. Na ocasião, os militares pediram ao tribunal que todos os eleitores das seções sorteadas para o teste fossem convidados a participar do processo de auditoria.

A preocupação dos líderes governistas é que o relatório seja usado pelo presidente para manter nas ruas os manifestantes que pedem a anulação do resultado da eleição e um golpe militar.

Uma reunião da bancada do PL com os deputados recém-eleitos, que deve ocorrer no final da tarde no Congresso, além do boato de que Bolsonaro fará uma live a respeito do relatório, também elevaram a tensão em Brasília ao longo desta terça-feira.

Hoje o que todo mundo quer saber é o que o presidente vai fazer após a divulgação do relatório, porque enquanto esse documento não for apresentado sempre ele poderá alegar suspeita sobre a votação. Com Bolsonaro, tudo é uma grande incógnita”, resumiu, em caráter reservado, um aliado do presidente no PL.

O próprio partido tem evitado reconhecer claramente o resultado da eleição para não ferir as suscetibilidades do presidente da República.

“Vamos aguardar o relatório do Exército, pra gente saber o que eles vão trazer. É importante para nós. Mas não temos nada na mão, por enquanto”, afirmou numa entrevista coletiva na terça-feira (8) o chefe do PL, Valdemar da Costa Neto, ao ser questionado se a legenda pretendia contestar o resultado das urnas.

“O Bolsonaro é o nosso capitão. Vamos segui-lo no que for preciso. Ele só vai questionar o resultado se tiver algo real na mão. Se não tiver, não vai fazer isso. Estamos esperando o relatório do Exército amanhã (nesta quarta-feira) para ver se tem alguma coisa consistente para que possa questionar o TSE. Vamos aguardar.”

Desde que amargou uma derrota por uma margem de apenas 2,1 milhões de votos no último dia 30, o chefe do Executivo se mantém recluso no Palácio da Alvorada, com poucos compromissos e pouca atividade nas redes sociais, onde sempre foi hiperativo, conforme informou O GLOBO.

Até as tradicionais lives transmitidas às quintas-feiras foram deixadas de lado.

Os pouquíssimos aliados que estiveram com o presidente nos últimos dias afirmam que ele está doente, com feridas na perna decorrentes de uma infecção, e que por isso tem evitado contatos frequentes com pessoas de fora do Palácio. Os dois únicos auxiliares autorizados a entrar e sair são o Subchefe de Assuntos Jurídicos, Pedro Sousa, e o secretário nacional de Justiça, José Vicente Santini.

Mas o fato de o presidente estar isolado por motivos de saúde não afastou o temor de que o silêncio de Bolsonaro tenha alguma razão estratégica – como, por exemplo, esperar um momento mais propício retomar o discurso sobre a existência de fraudes nas urnas e no sistema eleitoral.

Entre os manifestantes que restaram nas ruas após o bloqueio de estradas que se sucedeu ao anúncio da vitória de Luiz Inácio Lula da Silva, o relatório dos militares é visto como a última grande promessa de apresentação de provas de supostas fraudes nas quais os seguidores de Bolsonaro insistem, sem nenhuma evidência concreta.

Ao longo dos últimos meses, o chefe do Executivo utilizou os 88 questionamentos enviados pelas Forças Armadas ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) como munição para seus incansáveis ataques ao sistema eletrônico de votação.

Antes do primeiro turno, o presidente da República afirmou que se curvaria ao resultado das urnas caso os militares atestassem que não tinham sido encontradas irregularidades no processo.

Só que, uma vez concluído o primeiro turno, conforme revelou a coluna, Bolsonaro mandou que os militares segurassem a divulgação do relatório, porque eles não haviam constatado irregularidades.

Depois de anunciado o resultado do segundo turno, enquanto ainda não havia reconhecido a derrota, Bolsonaro chegou a ordenar ao partido que vasculhasse as atas das seções eleitorais para garimpar incidentes que ocorreram em cada local de votação por todo o País. O objetivo era ter um relatório sobre esses incidentes, mas Valdemar era contra.

No TSE, a expectativa é a de que o relatório dos militares se concentre na análise do projeto-piloto do Teste de Integridade das urnas com o uso da biometria de eleitores comuns. Esse teste, feito desde 2002, é uma das principais do processo de auditoria das urnas.

Essa foi a principal demanda das Forças Armadas nas negociações com o TSE, que realizava o teste das urnas com a participação de voluntários, mas sem o uso da biometria.

Os militares insistiam na execução do teste nas condições mais próximas da realidade. O processo consiste numa votação paralela à oficial, mas com o uso de cédulas de papel. A adesão, no entanto, frustrou os militares, que esperavam um maior número de participantes ao teste com biometria.

Nas Forças Armadas, também há insatisfação de generais ouvidos reservadamente pela equipe da coluna com a demora na divulgação do relatório.“Essas seguidas postergações permitiram especulações das mais diversas naturezas”, critica um general que atuou no primeiro escalão do governo Bolsonaro.

Indagado se teme o uso político do relatório para contestar o resultado das urnas, esse mesmo general respondeu: “Esse risco existe, mas o jogo acabou.” (O Globo – 09/11/2022)

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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