Fernando Gabeira: Neverlândia, o país do abismo cognitivo

Precisamos de pelo menos algumas verdades consensuais, como a noção da forma da Terra

Não é a primeira vez que visito a Neverlândia. Mas agora vivemos um momento diferente. O país precisa de conciliação, mas é prisioneiro das muitas realidades paralelas.

Conciliação não significa ausência de discordância, luta política ou mesmo caneladas. Mas, para que o debate resulte em algo positivo, é preciso certa realidade consensual. Não sou especialista em planejamento de viagens aéreas. Mas creio que seria muito difícil conceber o tráfico planetário imaginando a Terra plana. Precisamos de pelo menos algumas verdades consensuais, como a noção da forma da Terra ou a certeza de que dois e dois são quatro.

O universo político brasileiro é dividido por um abismo cognitivo. Diante de pessoas rezando na porta dos quartéis, tentando contato com alienígenas ou mesmo cantando o hino nacional para um pneu, é fácil afirmar: vivem numa realidade alternativa. O interessante é observar que os debates bolsonaristas defendem exatamente o oposto. Diante da indiferença em relação ao drama na porta dos quartéis e às múltiplas manifestações ao longo do Brasil, afirmam: vivem numa realidade paralela.

Como são poucos os pesquisadores que frequentam as duas faces da moeda, torna-se cada vez mais difícil achar uma faixa, ainda que estreita, de senso comum. O princípio do acordo talvez possa se dar em torno do resultado das eleições. Observadores nacionais e internacionais concordam que elas foram limpas, transparentes, seguras e auditáveis.

Entre os perdedores, no entanto, há muitas dúvidas. Eles se agarram em palavras complexas, como “código-fonte”. É relativamente fácil convencer uma pessoa de que as eleições só serão reconhecidas se for divulgado o “código-fonte”. Mesmo que não tenha noção alguma do papel do código-fonte, ela se dota de um argumento irrespondível nas rodas de conversa: sem o código-fonte, não tem conversa.

Isso me lembra um dia em que nosso carro em Minas enguiçou, e um mecânico diagnosticou: é a biela. Meu querido poeta Affonso Romano passou o resto do dia saboreando aquela palavra mágica: biela.

É preciso paciência e respeito na explicação sobre o resultado das eleições. Em seguida, é importante também chegar a um consenso sobre o STF. Num hemisfério, o Supremo é considerado o herói da democracia; no outro, o vilão da democracia. A que tipo de base consensual se pode chegar aí? É necessário combater notícias falsas, mas não é possível criar um Ministério da Verdade.

O caminho é fortalecer a capacidade de as pessoas questionarem uma notícia por conta própria. Há muitas possibilidades de treinamento, e não as estamos explorando. Não é razoável insultar ministros na rua, como aconteceu em Nova York. Mas também não é razoável que ministros viajem financiados por empresa para falar de democracia em Nova York.

Se é que há interesse em conciliação, será necessário buscar o mínimo de pontos de contato para que o grande argumento seja, finalmente, aceito: ganhar ou perder as eleições é normal, e a beleza da democracia é uma eleição depois da outra. O que envenena uma força política é supor que não há caminho para alternância no processo democrático.

Em 2018, o STF era acusado de impedir a candidatura de Lula. Foi preciso uma nova eleição para superar o problema. Agora o STF é acusado de reconduzir Lula.

A única forma de superar o que consideram um problema é se fortalecer para uma nova eleição. Ao longo de quatro anos, vimos milhares morrerem pela condução criminosa da pandemia, florestas serem devastadas, a cultura murchar — e seguramos a onda. Certamente, os perdedores de agora temem uma série de erros que o governo Lula poderá cometer. Não há outro caminho, exceto segurar a onda e tentar a virada adiante.

Esse é o sentido da democracia. No clima em que vivemos, terá de ser transmitido com respeito pela dor dos perdedores. Tudo isso num clima em que é difícil distinguir fato e mentira, sobretudo porque, para muita gente, essa distinção, lamentavelmente, perdeu toda a importância. (O Globo – 28/11/2022)

Fernando Gabeira, jornalista e escritor

Leia também

O padrão a ser buscado

É preciso ampliar e replicar o sucesso das escolas...

Parados no tempo

Não avançaremos se a lógica política continuar a ser...

Reforma tributária será novo eixo da disputa política

NAS ENTRELINHASSe a desigualdade é grande e a riqueza...

Vamos valorizar a sociedade civil

Os recentes cortes promovidos pelo Governo Federal, atingindo em...

Petrobrás na contramão do futuro do planeta

Na contramão do compromisso firmado pelo Brasil na COP...

Informativo

Receba as notícias do Cidadania no seu celular!