Movimento importou da extrema direita estilo, gramática e substância
A poucos dias do segundo turno das eleições presidenciais, o cenário está mais incerto e a disputa está mais virulenta do que em qualquer outro pleito de nossa história. Estivéssemos em tempos tranquilos, o foco da conversa das últimas semanas seria sobre propostas concretas para os persistentes problemas brasileiros.
Mas nada está normal. Em meio ao clima de medo e ódio, inflamado por mentiras e difamações, a política brasileira foi tragada para o campo da disputa identitária, da qual supostamente depende a sobrevivência individual e coletiva.
Estamos diante da americanização do debate público nacional.
O conceito pluralista de democracia, que orienta nossa Constituição, está sendo substituído por uma ideia de democracia antiliberal, em que só a maioria deve se beneficiar do governo e as minorias não podem participar da formulação de políticas públicas. A identidade sincrética e multirracial do país, sempre tratada como nossa maior contribuição civilizatória, dá lugar a um tipo de supremacismo cristão, que exclui todo e qualquer cidadão que porta valores distintos.
A política da conciliação e da tolerância, base do projeto da Nova República, vem sendo diariamente arrasada por uma dinâmica violenta, adversarial, em que o outro não merece ser ouvido ou respeitado.
Tirania da maioria, identidade supremacista e o tratamento do adversário como inimigo são traços da cultura política americana que remontam ao presidente Andrew Jackson (1829-1837).
Considerado o primeiro populista norte-americano, o general e ex-parlamentar governou o país confrontando as instituições, desobedecendo decisões da Suprema Corte de proteção a povos nativos e implementando um modelo de democracia majoritária e antielitista —para os homens brancos.
Jackson, claro, era produto de seu tempo. Mas a tradição jacksoniana vem sendo resgatada pelo Partido Republicano, de Ronald Reagan ao Tea Party, chegando à sua realização plena pelas mãos de Donald Trump.
Eleito em 2016, os trejeitos caudilhescos, preconceituosos e autoritários de Trump legaram-lhe a pecha de “o primeiro presidente latino-americano” dos Estados Unidos. Para além do estereótipo, o argumento está fundamentalmente equivocado: o populismo de Lázaro Cárdenas, Getúlio Vargas e Juan Perón era essencialmente inclusivo, em prol dos operários e do campesinato. O populismo norte-americano é excludente, sobretudo em termos raciais e culturais.
Jair Bolsonaro é o primeiro presidente jacksoniano do Brasil. O movimento que o sustenta importou da extrema direita norte-americana o estilo, a gramática e a substância que lhe dão unidade.
Da alt-right americana, a amálgama bolsonarista reproduziu a linguagem “troll”, o pendor por teorias conspiratórias e a disposição de travar a guerra político-cultural pela ameaça e desinformação. Da direita cristã, trouxe a pauta de valores, como aborto e “ideologia de gênero”, que até então pouco importava às lideranças evangélicas brasileiras.
Por fim, o bolsonarismo sequestrou o conceito de liberdade irrestrita da primeira e segunda emendas à Constituição dos Estados Unidos, que nada têm a ver com nosso ordenamento jurídico e nossa visão histórica de sociedade.
A adição da “liberdade” ao lema fascista “Deus, pátria e família” foi a fronteira final cruzada por Bolsonaro rumo à americanização da política brasileira. Em nome da liberdade, pode-se tudo.
No velho oeste tupiniquim, empresários assediam funcionários, pastores coagem fiéis, médicos combatem a ciência, maridos impõem suas vontades em casa e meios de imprensa sentem-se livres para mentir sem nenhum compromisso com a verdade —e com as consequências.
Muitos me perguntam o que será do Brasil se o bolsonarismo seguir vivo, dentro ou fora do Planalto. É difícil dizer, até porque o país tem uma trajetória de surpreendente resiliência. Mas, olhando para os EUA de hoje, onde cidadãos majoritariamente brancos saem às ruas armados até os dentes, defendendo uma suposta liberdade de oprimir e de dominar, eu sei exatamente o que não quero para o futuro. (Folha de S. Paulo – 26/10/2022)
Guilherme Casarões, cientista político e professor da FGV-Eaesp (Fundação Getulio Vargas – Escola de Administração de Empresas de São Paulo