Luiz Carlos Azedo: A violência pode aumentar na reta final do primeiro turno

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE

A pistola G2C 9mm tem carregadores de 12 munições e uma bala na câmara, para pronto emprego, sendo atualmente a arma compacta de porte velado mais vendida no Brasil. Custa em torno de R$ 3,8 mil no mercado legal de armas e pode ser comprada pela internet, parcelada em até 12 vezes no cartão de crédito. Nos Estados Unidos, custa US$ 200, pouco mais de R$ 1 mil. Quase todo bolsonarista raiz que se preza tem uma arma: as mais populares são as pistolas Taurus da linha G, a arma mais vendida no mundo.

Considerando o repasse da inflação, a receita da Taurus com a venda de armas cresceu 47,4% no primeiro semestre deste ano em relação ao mesmo período do ano passado. Sua participação no mercado brasileiro de armas passou de 21,3%, no primeiro semestre de 2021, para 28,6%. Foram 186 mil armas vendidas no Brasil de janeiro a junho, um aumento de 17,7% em base anual.

A Taurus produziu 1,1 milhão de armas no primeiro semestre deste ano, sendo 702 mil na fábrica brasileira, um aumento de 1,7% em relação a igual intervalo de 2021. A receita líquida da empresa alcançou R$ 1,3 bilhão de janeiro a junho, um aumento de 9,2% ante mesmo intervalo de 2021.

Os irmãos Flávio, Eduardo e Carlos Bolsonaro, senador pelo Rio, deputado federal por São Paulo e vereador carioca, respectivamente, são lobistas dos fabricantes de armas concorrentes da Taurus. Eduardo Bolsonaro tem conversado com gigantes estrangeiras do mundo dos armamentos e munições, como a alemã SIG Sauer e a italiana Beretta, para abrirem filiais no Brasil. Outras empresas do setor, como a austríaca Glock e a americana Smith & Wesson, também estariam interessadas em investir no país. A política de liberação do porte e uso de armas pelo presidente Jair Bolsonaro transformou o Brasil na fronteira do mercado de armas de pequeno porte para uso individual, em razão da multiplicação dos clubes de tiro.

“É uma situação que está fora do controle”, segundo o jornalista Leonardo Cavalcanti (SBTNews), pesquisador e mestrando em criminologia da Universidade de Brasília (UnB). De agosto de 2011 a julho deste ano, foram concedidas autorizações para 264.129 pessoas comprarem armas e munições, média de 795 por dia.

“O número é maior do que os efetivos das Forças Armadas (356 mil) e de policiais militares de todo o país (417 mil). O Brasil tem 700 mil pessoas aptas a andarem armadas, inclusive com armas bem mais potentes, como fuzis”, explica. O Exército não tem informações básicas sobre essas pessoas, como origem, gênero, idade ou renda salarial, no Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (Sigma); também não tem acesso ao Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública (Infoseg) do Ministério da Justiça, utilizado pela Polícia Federal para checar se as pessoas têm antecedentes criminais.

O Estado brasileiro sempre teve dificuldades para exercer o monopólio da força. O conceito tem origem hobbesiana, inspirado na figura do Leviatã, o mito fenício relatado no Livro de Jó: um monstro gigantesco, meio dragão, meio crocodilo, que vivia num lago e tinha como missão defender os peixes mais fracos dos peixes mais fortes.

O inglês Thomas Hobbes fez essa analogia em 1651 (Leviatã), para responder a duas questões: como as sociedades foram formadas e como devem ser governadas. É dele a famosa frase em latim “homini lupus homini” (o homem é o lobo do homem), justamente por sermos egoístas e entrarmos em conflito uns com os outros.

Radicalização política

Apesar de egoístas, porém, temos racionalidade e “medo da morte violenta”. Para Hobbes, era possível abrir mão da liberdade total e fazer um pacto, o “contrato social”, para sair da vida solitária e selvagem — ou seja, do “estado de natureza” — e viver junto, sob um poder soberano, no “estado civil” — isto é, em sociedade. Entretanto, para isso, é preciso um poder que os obrigue a respeitar o contrato. O Estado sozinho, absoluto, não resolve o problema. É preciso garantir liberdade e direitos aos cidadãos contra a “ditadura da maioria”.

É aí que John Stuart Mill, no século XIX, ou seja, dois séculos depois, entrou em cena. Em Sobre a Liberdade (1859), Mill resumiu: o Estado deve preservar a autonomia individual e, ao mesmo tempo, evitar a tirania da maioria. Tudo é permitido ao indivíduo, desde que as suas ações não causem danos a terceiros.

Todas as pessoas podem desenvolver de maneira autônoma o seu projeto de vida; a sociedade deve proteger a liberdade de indivíduos se desenvolverem de modo autônomo e, em troca, os seus membros não devem interferir nos direitos legais alheios; os danos que são causados a outras pessoas têm como consequência uma punição proporcional.

Na reta final da campanha eleitoral, clube de tiros estão virando comitês eleitorais e muitos de seus integrantes fazem uso ostensivo de suas armas em eventos públicos, o que é uma forma de intimidação. Os casos de violência já estavam se multiplicando, principalmente, os feminicídios. A radicalização política também já registra mortes por motivos fúteis.

A violência tende a aumentar nas próximas duas semanas que antecedem as eleições de 2 de outubro. Houve reforço até da segurança dos juízes eleitorais. Mesmo os policiais civis e militares, no cumprimento de suas missões, estão com a vida em risco em razão da grande quantidade de armas nas mãos de indivíduos violentos. (Correio Braziliense – 18/09/2022)

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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