No país, 33 milhões de brasileiros sofrem com algum nível de insegurança alimentar (Foto: Nelson Antoine/Shutterstock)
“Aqui em casa a mistura só é arroz e farinha. De manhã, meus meninos comem pão seco com água. Não tenho dinheiro para comprar leite”. O desabafo é da dona de casa Graziela dos Santos Pereira, de 27 anos, mãe solo de quatro meninos, de 11, 10, 8 e 6 anos, respectivamente. “Não consigo tomar nem remédio, porque dói com a barriga vazia”.
Moradora do Sol Nascente, favela no Distrito Federal e uma das maiores no Brasil, Graziela vive de “fazer bico de diarista”, como ela mesma conta, mas apenas quando consegue deixar as crianças aos cuidados de algum parente ou vizinho. “Não sobra para comer. A gente vive da compaixão das pessoas”, afirma. Ela se mudou do Maranhão para o DF, no ano passado, em busca de melhores condições de vida.
Sentada em uma cadeira de madeira de um barraco de lona, onde mora com os filhos, ela diz receber R$ 600 de auxílio do governo federal. Ela diz que “quebrar o jejum com pão de manhã”, “engolir a mistura no almoço” e repetir “arroz com farinha” na janta tem sido a realidade da família dela. “De vez em quando, a gente recebe ovo. Aqui não tem jeito de nem de guardar carne porque falta geladeira”, diz.
O retrato da miséria se estende a outras famílias brasileiras. Estudo da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Penssan), divulgado neste mês, mostra que três em cada dez famílias enfrentam insegurança alimentar moderada ou grave no país.
No total, em todo o país, 33 milhões de brasileiros sofrem com algum nível de insegurança alimentar, que tem três gradações: leve, moderada e grave. Famílias em insegurança alimentar grave passam fome, assunto regular nos discursos dos candidatos à Presidência da República e que mostra a gravidade do cenário brasileiro.
Negacionismo
No Brasil, a fome também é um dos assuntos que mais fazem os adversários cobrar explicações do presidente Jair Bolsonaro nos debates. Ele, porém, vai na linha do ministro da Economia, Paulo Guedes, que diz ser impossível ter 33 milhões de brasileiros passando fome no país.
Além disso, no mês de agosto, Bolsonaro vetou o reajuste de verbas para a merenda escolar aprovado pelo Congresso. Por isso, hoje o repasse para a compra de alimento para cada estudante do ensino fundamental e médio é de apenas R$ 0,36.
Se levar em conta a insegurança leve, de acordo com a pesquisa, o problema fica muito maior. No país, existem 125,2 milhões de pessoas com preocupação sobre a disponibilidade de alimentos, com algum grau de indisponibilidade deles ou passando fome. Equivale a seis em cada dez famílias brasileiras.
De acordo com o levantamento, as populações das regiões Norte e Nordeste são as que mais sofrem, em termos proporcionais, com a insegurança alimentar grave. No Maranhão, estado onde nasceu Graziela, por exemplo, quase dois terços (63,3%) das residências com crianças até dez anos apresentam insegurança alimentar moderada ou grave.
Em seguida, segundo a pesquisa, aparecem Amapá (60,1%), Alagoas (59,9%), Sergipe (54,6%), Amazonas (54,4%), Pará (53,4%), Ceará (51,6%) e Roraima (49,3%). As famílias com renda inferior a meio salário-mínimo por pessoa estão mais sujeitas à insegurança alimentar moderada e grave.
“Os resultados refletem as desigualdades regionais e evidenciam diferenças substanciais entre os estados de cada macrorregião do país. Não são espaços homogêneos do ponto de vista das condições de vida. Há diferenças socioeconômicas nas regiões que pedem políticas públicas direcionadas para cada estado que as compõem”, diz Renato Maluf, coordenador da Rede Penssan.
Grave retrocesso
O ano de 2022 será lembrado como o marco de um grave retrocesso da segurança alimentar no Brasil com uma quantidade de pessoas passando fome ainda maior do que o registrado 30 anos atrás. O governo, porém, nega.
Se hoje 33 milhões de brasileiros passam fome no país, em 1993, eram 32 milhões de pessoas nessa situação, de acordo com levantamento semelhante do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). A população brasileira era 27% menor que a de hoje.
O governo alega que o consumo dos mais pobres está garantido com os programas de transferência de renda cujos valores aumentaram no último ano. O negacionismo do governo do presidente Jair Bolsonaro sobre a fome se comprova, inclusive, na falta de programa efetivo de combate ao problema ou de orientação da população relacionada ao consumo adequado de alimentos.
A Organização das Nações Unidas (ONU) orienta que reduzir desperdício de alimentos é a saída para combater a fome e a insegurança alimentar. O órgão estima que 17% de toda a produção global de comida é desperdiçada, a maior parte dentro das casas. Locais que servem comida, como restaurantes, totalizam 5% desse desperdício, e os varejos de alimentar, 2%.
O problema, que atinge principalmente quem vive em favelas ou outras áreas mais pobres do país, tem chamado atenção de líderes mundiais, que vem pedindo esforços contra a crescente insegurança alimentar, agravada pela convergência de crises, pela invasão russa e falta de fertilizantes.
Em declaração conjunta, publicada ao final de uma reunião ministerial à margem da Assembleia Geral da ONU, em Nova York, neste mês, Estados Unidos, União Europeia, União Africana, Colômbia, Nigéria e Indonésia afirmaram seu “compromisso de agir de forma urgente, global e concertada para responder às extraordinárias necessidades alimentares de centenas de milhões de pessoas em todo o mundo”.
Graziela, que olhava seus filhos brincarem no terreno de chão batido onde fica seu barracão, diz não ter perspectiva de melhoria. “Está todo mundo falando disso agora como se estivesse preocupado porque é época de eleição, mas viver assim já é algo banalizado. Todo dia a gente ouve o estômago ‘roncar’ de fome em algum momento”, afirma.
“Fome tem solução”
O diretor do Centro de Excelência contra a Fome do Programa Mundial de Alimentos no Brasil, Daniel Balaban, diz que o principal desafio no combate à fome no mundo é mobilizar países a criarem medidas que os façam parar de pedir ajuda externa. “Para isso, eles têm que investir em políticas públicas”, afirmou.
O diretor ressalta que a continuidade de políticas públicas possibilitará à população acesso a direitos básicos, como alimentação nutritiva e saudável. “A fome tem solução, e, para isso, temos que ter vontade política de resolver o problema. Sem esse investimento contínuo, há risco de os países continuarem a enfrentar cenários de insegurança alimentar e desigualdade social”, alertou.
Segundo Balaban, boas práticas de combate à fome devem ser ancoradas em quatro pilares principais: ajuda humanitária, investimento em educação, políticas de auxílio a pequenos produtores rurais e investimento em ciência e tecnologia. A orientação serve, sobretudo, para países que tiveram a situação da fome agravada pela pandemia da covid-19.
Assistente social e mestre em políticas públicas pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Andreia Lauande ressaltou que a fome não é um problema que surgiu com a pandemia do coronavírus. “Infelizmente, não é só a pandemia responsável por esse processo. Nós passamos por uma crise extremamente complexa que se acentuou com a pandemia”, disse ela. (Revista Política Democrática online de setembro – https://www.fundacaoastrojildo.org.br/fome-cai-na-boca-de-presidenciaveis-e-grita-na-barriga-dos-mais-pobres/)