Luiz Carlos Azedo: Lula explora favoritismo para ampliar alianças

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE

Os manifestos em defesa da democracia, das urnas eletrônicas, da Justiça Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal (STF) — um deles articulado por ministros aposentados da Corte, professores e alunos da tradicional Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, da Universidade de São Paulo (USP); o outro, pela poderosa Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), com apoio da Federação do Comércio de São Paulo (Fecomércio-SP) e da Federação Brasileira dos Bancos (Febraban) — sinalizam um grande movimento de placas tectônicas na política brasileira.

Representam a reação da sociedade civil à narrativa golpista de Jair Bolsonaro (PL), principalmente depois da reunião com diplomatas de cerca de 70 países, na qual levantou suspeitas sobre o sistema eleitoral e atacou os ministros do Supremo Luís Roberto Barroso, Édson Fachin e Alexandre de Moraes. O fato de o presidente ter anunciado a intenção de convocar uma manifestação para o 7 de setembro, dia do Bicentenário da Independência, com o propósito de confrontar o Supremo, no domingo passado, na convenção eleitoral do PL, deu mais repercussão aos manifestos, que podem chegar a um milhão de assinaturas de personalidades dos mundos jurídico, empresarial, acadêmico, científico e artístico.

A 63 dias do primeiro turno das eleições, os dois manifestos sinalizam um realinhamento de forças políticas e sociais de muita envergadura, cujas consequências eleitorais não estão ainda definidas, mas revelam o profundo isolamento político de Bolsonaro, dos generais que o cercam e dos políticos do Centrão que controlam o Orçamento do governo. O inegável prestígio popular, que mantém uma base eleitoral bastante resiliente, e o peso da utilização da máquina governamental para desequilibrar a eleição a seu favor, por meio da aprovação da PEC da Eleição, não vêm sendo suficientes para reduzir os índices de rejeição de Bolsonaro, o que mantém a polarização e a radicalização políticas, mas não a sua expectativa de poder.

A forte repercussão negativa aos pronunciamentos dele contra a urna eletrônica e o STF também aprofundou seu isolamento internacional. E pôs uma saia justa no seu ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, que vinha sendo o porta-voz das infundadas suspeitas em relação à segurança das urnas eletrônicas.

Na quinta-feira, reunidos em Brasília, ministros da Defesa de 21 países assinaram uma carta em que se comprometem a manter e defender a democracia, a paz na região e reconhecer a soberania dos países. A 15ª Conferência de Ministros da Defesa das Américas (CMDA) já estava prevista, porém serviu para o secretário de Defesa dos Estados Unidos, Lloyd J. Austin III, cobrar “devoção à democracia” de ministros da Defesa de países das Américas, num claro recado aos generais que formam o estado-maior de Bolsonaro no governo, entre os quais o vice Walter Braga Neto e o próprio Nogueira.

Alianças

Austin afirmou que as forças armadas devem se manter “sob firme controle civil” e que as instituições militares precisam ser transparentes. Foi mais um dos seguidos sinais emitidos pelo presidente norte-americano Joe Biden, de que Bolsonaro não deve embarcar numa aventura golpista. Essas advertências encontram eco na sociedade, principalmente na elite política, jurídica e empresarial do país, e entre os militares, cujas relações históricas com os Estados Unidos foram tecidas a partir da entrada no Brasil na II Guerra Mundial, com o envio da Força Expedicionária Brasileira (FEB) aos campos de batalha da Itália.

Na medida em que mantém seu favoritismo, a expectativa de poder está se transferindo cada vez mais para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ocorre que não existe uma relação mecânica entre o descolamento do establishment empresarial e jurídico do governo Bolsonaro, revelado pelos manifestos, e o apoio eleitoral desses segmentos ao petista. Os atos são de caráter suprapartidário e, de certa forma, alimentam as esperanças dos candidatos Ciro Gomes (PDT) e Simone Tebet (MDB) de que ainda possa haver espaço para uma terceira via. Ambos apostam que a alta rejeição de Bolsonaro pode levar os eleitores antipetistas a buscar uma alternativa.

É aí que Lula, macaco velho de eleições, se movimenta para consolidar a polarização com Bolsonaro e tentar vencer o pleito no primeiro turno. Primeiro, tirou o salto alto e resolveu conversar com André Janones (Avante) para remover sua candidatura, que oscila na faixa entre 3% e 2% dos votos — uma diferença que pode levar a eleição para o segundo turno. O parlamentar mineiro é um fenômeno das redes sociais e tem muita penetração no eleitorado jovem.

Lula também negocia a retirada da candidatura de Luciano Bivar (União Brasil), que não tem expressão eleitoral significativa, mas dispõe de muito tempo de rádio e televisão e é um desafeto figadal de Bolsonaro. No pacote desse acordo, pode haver um acerto tácito na Bahia, que é o quarto colégio eleitoral do país e no qual o ex-prefeito de Salvador ACM Neto (União Brasil) desponta como favorito — tem quase 40 pontos de vantagem em relação ao petista Jerônimo Rodrigues, o segundo colocado. (Correio Braziliense – 31/07/2022)

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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