O coronel Ricardo Sant’Ana foi afastado da comissão militar de acompanhamento do processo eletrônico de coleta e totalização da eleição de outubro. Credenciou-se para isso compartilhando um vídeo pueril contra as urnas e opiniões impróprias.
Deu curso à afirmação de que “votar no PT é exercer o direito de ser idiota”. Foi mais longe e insultou eventuais eleitoras da senadora Simone Tebet escrevendo: “Vaca vota em vaca.”
Nos dois casos transgrediu as normas do Exército que disciplinam o uso de redes sociais por militares da ativa. Essas são as credenciais que o descredenciaram, mas há também as que o credenciaram.
O coronel Sant’Ana é o chefe da Divisão de Sistemas de Segurança e Cibernética da Informação do Exército. Formou-se em engenharia de telecomunicações pelo Instituto Militar de Engenharia, uma notável instituição de ensino. Lá fez o seu mestrado e o doutorado. Desse assunto ele deveria entender.
A ideia de que ele diz o que diz porque segue as ideias do capitão Bolsonaro é curta.
O ministério da Defesa já enviou ao Tribunal Superior Eleitoral 88 perguntas. Recebeu uma resposta de 700 páginas e não lhe deu tréplica pública.
Depois do ofício constrangedor e “urgentissimo” do ministro da Defesa pedindo um acesso ao sistema que lhe estava disponível desde outubro do ano passado, a conduta de Sant’Ana misturou-se com a dos negacionistas.
Como o coronel entenderia do assunto, surgiu uma oportunidade para que exponha livremente suas dúvidas. Como ex-aluno, mestre e doutor pelo IME, ele usaria a visibilidade que suas postagens vulgares lhe deram para se explicar, afinal, é o chefe da Divisão de Sistemas de Segurança e Cibernética da Informação do Exército.
As redes sociais, como os terrenos baldios, acolhem tudo o que lá se atira, opiniões, tolices, insultos e mentiras. Até hoje Bolsonaro e seus seguidores não contribuíram com fatos para o debate em torno da segurança da coleta e da totalização dos votos. As setecentas páginas da resposta do TSE ao ministério da Defesa não tiveram resposta conhecida.
Sant’Ana poderia preencher esse vazio. A exposição de suas dúvidas ajudaria Bolsonaro. Se os negacionistas continuarem na penumbra das insinuações, correm o risco do ridículo em que patinam. Vale lembrar que o TSE já explicou que nele não há sala escura e que todo o processo de totalização pode ser livremente auditado.
Afinal, a cena da contestação de um resultado eleitoral já foi imortalizada há mais de meio século numa comédia italiana na qual o candidato derrotado troca a manchete de seu jornal por uma denúncia sensacional: “Fraude nas urnas”.
Desde 2003, quando Fernando Henrique Cardoso deixou o Planalto, a política brasileira perdeu o senso de humor. Pena. Como o golpismo quer colocar sob suspeição o processo eleitoral de 2022, não custa relembrar o episódio de 1965, quando William Buckley Jr. foi candidato a prefeito de Nova York.
Numa época em que o mundo parecia ir para a esquerda ele era um conservador brilhante, audaz, rico e divertido. Um repórter perguntou-lhe qual seria seu primeiro ato caso fosse eleito.
Pedir a recontagem dos votos.
Não foi preciso. (Folha de S. Paulo – 10/08/2022)
Elio Gaspari, jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles “A Ditadura Encurralada”