Andrea Jubé: Três décadas de embates com a democracia

Faz 35 anos que o então capitão do Exército Jair Bolsonaro respondeu pela primeira vez pelo envolvimento em atos de natureza antidemocrática. “Não há dúvida de que toda essa movimentação tem ramificações, está articulada com a extrema direita militar e civil e tem o objetivo real de desestabilizar o processo de transição democrática”, afirmou o professor e coronel da reserva Geraldo Cavagnari Filho, um dos principais estudiosos da questão militar no Brasil, em entrevista ao Jornal do Brasil, em 27 de outubro de 1987.

O Brasil não havia completado a passagem para a democracia, iniciada com a eleição indireta de Tancredo Neves em 1985 (e subsequente posse de José Sarney) e que teria o seu apogeu com as eleições diretas para presidente em 1989, após um hiato de 29 anos.

Naquela entrevista, o professor Cavagnari Filho, doutor em Ciências Militares pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército – e fundador do Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade de Campinas (Unicamp) – reportava-se à denúncia veiculada pela revista “Veja” havia dois dias, que implicava Bolsonaro em um plano para instalar bombas nos banheiros da Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (Esao), no Rio de Janeiro, e da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), em Resende (RJ), a fim constranger o ministro do Exército, general Leônidas Pires Gonçalves, e pressionar pelo reajuste salarial dos militares.

Para Cavagnari Filho, uma ala de oficiais da ativa e generais da reserva, que ocuparam cargos políticos e estavam saudosos do regime militar, queria “fazer crer que manifestações de insatisfação de natureza econômica” eram, na verdade, “reações contra a ingovernabilidade [do governo Sarney] e contra o processo redemocratizante”.

O professor e coronel da reserva descartou, todavia, um golpe militar. “Perigo [de golpe] eu não vejo, mesmo porque dar um golpe é uma coisa e ter sucesso é outra.” Para Cavagnari, que faleceu em 2012, o golpe não teria o apoio de segmentos expressivos da sociedade, como ocorreu em 1964. Bolsonaro foi processado, mas acabou sendo absolvido pelo Superior Tribunal Militar (STM).

Cinco anos depois, em junho de 1993 – já deputado federal pelo Partido Progressista Reformador (PPR), raiz do Progressistas (PP) – Bolsonaro novamente se viu alvo de denúncias de ameaça ao Estado Democrático de Direito.

Em palestras públicas, ele vinha defendendo o fechamento do Congresso Nacional e a implantação no Brasil de uma ditadura como a de Alberto Fujimori no Peru. “Sou a favor, sim, de uma ditadura, de um regime de exceção, desde que este Congresso dê mais um passo rumo ao abismo”, discursou Bolsonaro no plenário da Câmara em 24 de junho de 1993.

Ele argumentava que o regime democrático não permitiria a resolução de “graves problemas nacionais”, como o número de deputados de Roraima: “Na atual democracia, temos como resolver os problemas nacionais? Quando é que vamos conseguir quorum de três quintos para aprovar uma emenda que diminua a bancada de Roraima de oito para três ou dois deputados?”, indignou-se.

Cerca de uma semana depois, a Mesa Diretora da Câmara abriu processo de cassação contra Bolsonaro por quebra de decoro. O procurador da Câmara era Vital do Rêgo (PDT-PB), hoje ministro do Tribunal de Contas da União (TCU). O processo deu em água de barrela. A democracia atacada pelo deputado o blindou, já que pela Constituição de 1988, o parlamentar é inviolável por suas opiniões e atos.

Pois 35 anos depois do plano de explodir bombas em banheiros de quartéis, o agora presidente Jair Bolsonaro acabou estimulando a edição da “Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito”, lida na Universidade de São Paulo (USP) no dia 11 de agosto. O documento não cita o nome do presidente, mas faz uma defesa eloquente de pilares democráticos atacados por ele, como o Poder Judiciário e o sistema eleitoral. “São intoleráveis as ameaças aos demais Poderes e setores da sociedade civil e a incitação à violência e à ruptura da ordem constitucional”, diz um trecho do documento.

O presidente e seus aliados demonstraram contrariedade com a carta democrática. Bolsonaro chamou de “caras de pau” e “sem caráter” os mais de 1 milhão de subscritores da carta, que teve a adesão de brasileiros de todas as classes sociais: banqueiros, empresários, professores, engenheiros, médicos, enfermeiros, desempregados, policiais, motoristas, pedreiros, entre tantos outros.

Em setembro do ano passado, uma semana após o Dia da Independência – quando Bolsonaro pregou desobediência ao Supremo Tribunal Federal (STF) e caminhoneiros ameaçaram invadir a Corte – o Datafolha divulgou uma pesquisa sobre o apoio dos brasileiros à democracia: 70% dos entrevistados responderam que se tratava do melhor sistema para o país, 9% declararam preferência pela ditadura e 51% afirmaram ver chance de novo regime de exceção no país.

Um ano depois, o Datafolha voltará às ruas com o mesmo tema e divulgará o resultado na quinta-feira. Uma semana após as dezenas de atos em defesa da democracia, que reproduziram o manifesto da USP e no contexto dos sistemáticos ataques de Bolsonaro ao sistema eleitoral, o entrevistado terá de responder se prefere uma ditadura ou uma democracia.

Em outubro de 1987, ao traçar um breve perfil do então capitão Bolsonaro, o “Jornal do Brasil” afirmou tratar-se de um “líder que não sabe exercer sua liderança”. Um militar que costumava carregar um revólver calibre 32 escondido na botina, do qual não se separava, que era amante de motocicletas e não dispensava um bom churrasco. “Sonhava ser herói nacional ou deputado nas próximas eleições”.

Passados 35 anos, Bolsonaro mudou pouco: continua amante de armas, motocicletas e de um bom churrasco. Chamado de “mito”, ainda sonha ser “herói nacional”. Todavia, com chances de se reeleger, passou da hora de rever sua relação com a democracia – sistema consagrado e aclamado pela maioria expressiva do povo brasileiro. (Valor Econômico – 16/08/2022)

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