Neste ano do centenário de Darcy Ribeiro, creio que tanto ele quanto outros lutadores pela causa ficariam desolados com o estado da educação no Brasil.
Talvez seja por isso que não se comemore tanto a passagem de Darcy pela nossa vida, uma sensação de vergonha por termos tido gente tão generosa cuidando do tema, e ele ter acabado na mão de pastores ávidos por dinheiro, ouro, mercadores de bíblias superfaturadas.
Mesmo com nossos melhores quadros, teríamos dificuldades com a pandemia. Ela implicaria atraso para todos e, potencialmente, aprofundaria as diferenças entre ensino particular e público.
Com a gestão Milton Ribeiro no MEC, todos os problemas da pandemia foram amplificados pela omissão. Certamente, isso não constará da CPI nem de inquéritos policiais. A História registrará.
O que diria Darcy de um ministro que se coloca contra a inclusão de crianças com necessidades especiais nas escolas, sob o argumento de que atrasam o rendimento das outras?
Típico dos conservadores que fazem tudo para criminalizar o aborto. Têm um grande interesse pelo feto e um absoluto desprezo pelas crianças. Rejeitam planos sociais, combatem a inclusão, defendem o cada um por si.
O ex-ministro de Bolsonaro também afirmou que os gays vinham de famílias desajustadas, numa tentativa desesperada de desqualificá-los. Está sendo processado por isso, mas a pena deveria ser a reeducação. Ministros da Educação de Bolsonaro precisam voltar à escola. O primeiro deles, Ricardo Vélez Rodríguez, mal esquentou a cadeira, e o segundo, Weintraub, estava sempre mergulhado numa batalha contra nosso idioma.
A CPI protocolada na semana passada terá muito o que desvendar ainda sobre o mundo da educação bolsonarista. Os pastores envolvidos frequentavam o Palácio do Planalto e foram uma escolha de Bolsonaro. Ribeiro apenas atendeu ao chefe. Disse isso num áudio vazado e também na Polícia Federal.
O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) é ocupado por um homem do Centrão. Outro dia, uma simples denúncia sobre compra de ônibus escolares apresentava um sobrepreço de R$ 732 milhões.
Os pastores jogavam um jogo mais modesto. Propunham obras a prefeitos e aceitavam propinas pela interferência no ministério. Vendiam bíblias em grande quantidade, algumas com a foto de Ribeiro, grande personagem, que certamente não figura nos Evangelhos.
Ao longo do ano, li que foram comprados computadores em número maior que o de alunos, que equipamentos ultrassofisticados eram destinados a escolas que nem saneamento básico tinham.
Certamente a CPI descobrirá escândalos. De um modo geral, para isso são feitas. Nada, no entanto, consegue revelar o tempo e a energia perdidos com a escolha de Bolsonaro de decretar uma guerra cultural, de destruir as bases reais de nossa educação para atingir seus objetivos ideológicos, como o ensino domiciliar.
No fundo, é também uma guerra contra o ensino público de qualidade, algo que jamais alcançamos na plenitude, o que não significa falta de esforço de muita gente.
Comemorar os 100 anos de Darcy Ribeiro traria à luz muitas dessas vitórias, inclusive as lideradas por ele, como a Universidade de Brasília.
No entanto viveremos esse centenário de trás para a frente: por meio da CPI, veremos como a religião se intrometeu no ensino e como os frutos eram destinados aos bolsos dos pastores e às melhorias em suas igrejas.
No passado, ouvi muita gente dizer que o grande problema do Brasil era a educação. Alguns achavam que o resolvendo, todos os outros também se resolveriam.
Essa tese para mim é um pouco exagerada. No entanto é inegável que muitos problemas brasileiros seriam resolvidos por uma educação pública de qualidade.
O fato de termos chegado a tal ponto de degradação mostra como nos distanciamos dos sonhos e como teremos trabalho daqui por diante, sobretudo agora que não temos Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira e tantos outros que dedicaram sua vida à importante causa. (O Globo – 04/07/2022)
Fernando Gabeira, jornalista