George Gurgel de Oliveira: O Brasil e a escravidão: os desafios históricos continuam atuais

Devemos aproveitar ainda o mês de junho para uma reflexão sobre o presente e o passado da sociedade brasileira em relação à história da escravidão, das condições do processo de libertação em 13 de maio de 1898 e a realidade da população negra hoje no Brasil.

Saber como se desenvolveu e os fundamentos da escravidão no País, assim como o processo de libertação da escravatura até à atualidade, são desafios para avançarmos e superarmos a difícil realidade que vivem os negros ainda hoje no Brasil.

As lutas de libertação e a abolição da escravatura

A escravidão africana, até meados do século XIX, era um dos fundamentos da vida econômica na América e na Europa. Fazia parte da estrutura das relações políticas, econômicas e sociais; base de acumulação de riqueza dos países da Europa, inclusive da Inglaterra, berço da revolução industrial. A mão de obra escrava foi o fundamento da economia colonial na América, como as máquinas da primeira revolução industrial foram primordiais no desenvolvimento capitalista, a partir do século XVIII na Europa.

A cultura do racismo nasce como uma maneira de exclusão dos povos africanos da vida e das conquistas da sociedade humana, durante o século XV, deixando marcas profundas até à atualidade. Desde então, a escravidão passou a ser diretamente relacionada aos povos africanos, como uma maldição, a partir de uma visão cultural e religiosa eurocêntrica nas colônias da América, na Europa e no próprio continente africano. O Brasil foi o país de maior concentração de escravos africanos do mundo. Chegou a uma população de 5 milhões deles ao longo de mais de 300 anos em que perdurou a escravidão negra no Brasil.

O escravagismo na América já tinha precedentes no continente e, com a chegada de Cristóvão Colombo, em 1492, iniciou-se um massacre e a escravização destas populações indígenas, em todo o continente americano, inclusive no Brasil, a partir da colonização portuguesa.

Até o inicio do século XIX, os colonizadores portugueses mataram, a cada 100 anos, em torno de 1 milhão de indígenas através de guerras de extermínio, doenças e enfermidades trazidas com a colonização europeia. Dos 4 milhões de índios existentes na chegada de Pedro Álvares Cabral, a população indígena foi reduzida a menos de 1 milhão de pessoas no início do século XIX, quando a família real chegou ao Brasil.

O movimento abolicionista

A existência anterior da escravidão na história da humanidade, inclusive a escravidão de brancos e de indígenas, não traz relatos de sofrimentos e de perdas tão significativas e duradouras como o escravagismo dos povos africanos, realidade que nos agride como humanidade, até os tempos atuais.

O abolicionismo consolidou-se como uma das formas mais representativas dos movimentos políticos do século XIX, que tinha como objetivo o fim do comércio de escravos africanos e a abolição da escravatura.

No Brasil, as leis abolicionistas decretadas entre 1850 e 1888 refletiam os conflitos e as contradições do período monárquico frente à pressão dos abolicionistas e das lutas da população negra organizada que resistiu de diversas formas, de maneira destacada nos quilombos, desde o início da escravidão no Brasil, no final do século XVI.

A abolição da escravatura no Brasil, em 13 de maio de 1888, assinada pela princesa Isabel, foi fruto das mudanças que já vinham acontecendo na sociedade brasileira, pressionada pelas transformações políticas, econômicas e sociais que aconteciam na Europa, na própria América, a exemplo do movimento de libertação dos escravos no Haiti que foi fundamental na proclamação da República naquele pais. Aqui, o fim da escravidão atendia aos interesses da Inglaterra, em plena industrialização, que necessitava de mercado e matéria prima fora do continente europeu para consolidar a sua hegemonia no cenário internacional.

As leis abolicionistas no Brasil promoveram a emancipação dos escravos, de maneira gradual. A primeira foi a Lei Eusébio de Queiroz, em 1850. Posteriormente, a Lei do Ventre Livre, em 1871, e a Lei dos Sexagenários, em 1885. Finalmente, a lei assinada pela princesa Isabel, em 13 de maio de 1888, que punha fim à escravidão no País. As principais lideranças negras abolicionistas foram André Rebouças, José do Patrocínio e Luiz Gama. Ainda devem ser destacadas as lideranças femininas de Maria Tomásia, Adelina e Maria Firmina dos Reis, entre outras abolicionistas brasileiras.

Não se deve esquecer que a abolição da escravatura aqui atendeu aos interesses das oligarquias nacionais que já não podiam manter o custo da mão de obra escrava, base da acumulação da riqueza colonial, ainda em função da realidade internacional e em razão do que o Brasil já representava em função das suas riquezas naturais, particularmente minerais, produção/potencialidades agrícola e pecuária, um espaço de acumulação e de mercado da economia capitalista mundial.

Em uma outra perspectiva, acontece a luta dos quilombolas. Os quilombos eram organizados como espaços de resistência, de libertação, no caminho de construção de novas relações políticas, econômicas e sociais. O de Palmares é o mais conhecido e aclamado com a liderança de Zumbi, cuja data de sua morte, 20 de novembro, passou a ser a data nacional de resistência e de luta pelos direitos da população negra no Brasil, desde 2011.

A liberdade obtida pelos negros é o resultado das lutas de resistência dos movimentos de libertação, desde quando os(as) escravos(as) chegaram ao Brasil, dos movimentos quilombolas e dos abolicionistas, de resistências e de conquistas no processo de emancipação da população negra como parte integrante das lutas de transformação da sociedade brasileira, com seus conflitos e contradições históricos e atuais.

A abolição do sistema escravagista, no dia 13 de maio de 1888, transformou a realidade política, econômica e social do Brasil. Foi a culminação de um processo de lutas da população negra, dos abolicionistas, com apoio da monarquia e das elites brasileiras, que já não podiam adiar os processos políticos, econômicos e sociais que determinavam as relações de produção da sociedade brasileira e mundial.

Os desafios atuais?

Os desafios históricos de inclusão da população negra na sociedade brasileira continuam atuais.

O fim da escravidão, no século XIX, não incorporou a população negra à nova realidade política, econômica e social capitalista. Sem a terra e a escolaridade necessárias os(as) negros(as) libertos(as), na sua maioria, ficaram à margem da sociedade brasileira, situação que continua até à atualidade, apesar das conquistas e dos avanços da população negra, consolidadas na Constituição de 1988 e os seus desdobramentos político-institucionais.

Desde então, por tudo o que o Brasil representava e continua representando, inicialmente como Colônia, depois como Monarquia até à proclamação da República e atualmente, a população negra continua sem a devida representação na vida política, econômica e social.

Atualmente quais são os compromissos dos que governam, da sociedade e da cidadania em geral frente à realidade de exclusão da população negra brasileira?

O que pensam hoje o Movimento Negro e os outros movimentos políticos, econômicos, sociais, ambientais e multiculturais frente às mudanças em curso nas sociedades brasileira e mundial, onde a educação, a ciência, a tecnologia e seus reflexos no mundo do trabalho e da cultura impactam a vida de cada um de nós e de toda a sociedade?

O Brasil, ainda em pandemia, particularmente os(as) trabalhadores(as) de menor renda e a população desempregada em geral, na sua maioria negra, continuam enfrentando sérias dificuldades econômicas e sociais, entre as quais a falta de uma renda emergencial permanente que lhes assegure o mínimo de dignidade para atravessarem a crise agravada com a contaminação de milhões e a morte de mais de 700 mil pessoas pela Covid-19. Esta é a dimensão da tragédia que atinge principalmente a população de baixa renda, as mulheres na sua dupla jornada de trabalho, as populações indígena e negra, historicamente excluídas no Brasil.

A inclusão dos negros (54% da população brasileira, segundo o IBGE) deve ser realizada a partir de pautas afirmativas e de reparação com o olhar do presente no caminho de um futuro que unifique a sociedade brasileira, construindo uma agenda nacional para a saída da crise no caminho da consolidação e ampliação da democracia. A população negra e suas representações no Brasil devem estar em diálogo permanente com a opinião pública e a sociedade em geral fortalecendo suas redes sociais e de comunicação, defendendo a melhoria das suas condições de vida, ampliando sua participação nas organizações do Estado, do Mercado e da Sociedade Civil, apostando em uma agenda nacional reformista que retire o Brasil desta grave crise política, econômica, social, ambiental e de valores que estamos vivendo.

Portanto, a população negra e a sociedade brasileira em geral estão desafiadas a construir uma agenda propositiva a ser pactuada no enfrentamento dos reais problemas nacionais agravados com a pandemia: realizar as reformas no caminho de uma nova economia, pensando o Brasil nos próximos 5, 10, 15 e 20 anos, considerando a sua dimensão continental, as potencialidades nacionais e regionais, seus ativos naturais e a diversidade étnica e cultural.

A base desta reforma democrática é a educação, a ciência e a tecnologia que devem ser incorporadas como estruturantes e estratégicas, melhorando a qualidade de vida dos que trabalham, da população negra e de toda a sociedade brasileira, nas próximas décadas.

Assim, estamos desafiados a construir uma sociedade que supere os conflitos e as contradições gerados no Brasil historicamente construído, no caminho de uma sociedade mais democrática, inclusiva na sua organização política, econômica e social, e melhor distribuidora da riqueza produzida por toda a sociedade.

Vamos avançar? (Blog Democracia Política e novo Reformismo – 02/06/2022)

George Gurgel de Oliveira, professor, doutor, da Oficina da Cátedra da UNESCO-Sustentabilidade, da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e do Conselho do Instituto Politécnico da Bahia

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