Há momentos em que o tema do artigo se impõe, apesar das dúvidas sobre como abordá-lo ou mesmo sobre se um silêncio enlutado não seria mais eloquente.
O assassinato de Dom Phillips e Bruno Pereira já me alcança com a vista cansada de cobrir crimes desse gênero na Amazônia. Lembro-me do enterro de Chico Mendes, o cortejo movendo-se lentamente pelas ruas de Xapuri. Da noite da morte de Dorothy Stang, quando tivemos de comprar redes para dormir numa casa abandonada.
Em cada um desses casos de repercussão sobre o qual escrevia, havia sempre muitas outras vítimas anônimas que tombaram pela mesma causa.
No recente programa que fiz na região, usei a varanda de uma modesta casa da Ilha de Marajó para dizer que talvez fosse minha última viagem à Amazônia, porque, tal como a conhecemos, talvez não exista mais nos próximos anos.
A Amazônia que vemos como uma grande esperança para conter o CO2 e evitar o aquecimento global, a Amazônia com que contamos para regular nosso regime de chuvas — tudo isso escapa entre nossos dedos.
Recente pesquisa mostra que, das dez cidades que mais emitem gases de efeito estufa, oito estão na Amazônia. As outras duas são Rio e São Paulo.
Outro trabalho mostra que os homicídios cresceram 52% no Amazonas. Sugere, claramente, que a violência é um movimento integrado que derruba, simultaneamente, árvores, bichos e pessoas.
Se a Amazônia, tal como nós a vemos, desaparecer, a própria ideia de Brasil também se dissolve numa paisagem desoladora.
Para muitos da minha geração, seria a morte compartilhada: morremos nós e o Brasil que amamos. Mas e os outros? Os que ainda têm uma longa vida pela frente? Foi um pouco com olhar de despedida e de esperança que viajei essas três semanas pela região.
Há um grande trabalho de resistência. Da mulher que cria abelhas ao homem que produz chocolate com os índios, aos jovens que se esforçam por achar uma sobrevivência sustentável, às populações tradicionais que se reúnem em Brasília para defender seus direitos.
Essas pessoas não estão sós. Há muita gente fora da Amazônia que apoia seu esforço. Creio que há muita gente no mundo que também se liga nessa esperança.
A força da destruição é gigantesca. Será preciso mais energia, mais consciência daqueles que herdarão o Brasil e o planeta. E os que se preparam para partir talvez não tenham nada mais importante a fazer no tempo que lhes resta.
O momento é difícil porque o presidente do Brasil se identifica emocionalmente com os criminosos. Estimula o garimpo ilegal, o desmatamento, a dissolução das culturas indígenas, autoriza a criação de pistas clandestinas na floresta.
Infelizmente, as Forças Armadas continuam esperando um exército invasor e não perceberam que ele já está em campo. Sou testemunha da abnegação dos soldados e familiares nos postos de fronteira, da ajuda da FAB aos povos da floresta, mas em termos conceituais não falamos a mesma língua.
Os militares não reconhecem o país que tentamos defender e veem atrás de nossos corpos o vulto de potências estrangeiras que querem nos devorar.
Quando seremos uma só vontade na construção de um futuro que ainda é possível, com tantas riquezas que nos fariam uma potência ambiental num mundo em transformação? Ainda considero possível atrair as Forças Armadas para um projeto de desenvolvimento sustentável da Amazônia, valorizando os produtos da floresta.
Bolsonaro é, por seu lado, encarnação da perversidade que está matando a Amazônia e, consequentemente, o Brasil.
Verdade é que a destruição não começou com ele. Só houve êxito de governo contra o desmatamento quando a sociedade participou.
Esse é um fato. Outro fato pouco discutido: a Amazônia não é só floresta, 70% das pessoas vivem em cidades. É preciso pensar no todo e pensar grande. (O Globo – 20/06/2022)
Fernando Gabeira, jornalista