Daniel Rittner: O telefonema mais importante do país

Muito mais que uma cordialidade entre vencedor e perdedor

O telefonema mais importante dos próximos quatro anos – uma ligação rápida mas crucial para pacificar minimamente o país e tirar os brasileiros da exaustão emocional, para abrir caminho à reconciliação das famílias, à volta de amizades desfeitas pela política, à troca de gentileza entre vizinhos – tem data para acontecer: dia 2 de outubro (primeiro turno das eleições presidenciais) ou 30 do mesmo mês (segundo turno).

Não vale declaração às redes de TV, nota do QG de campanha ou postagem nas redes sociais. Tem que ser telefonema, coisa de um ou dois minutos, filmado por ambos os lados para farta divulgação. O candidato que sair derrotado das urnas ligará para o vitorioso. Reconhecerá a derrota e desejará sucesso ao eleito. Dirá que as divergências entre eles não o impedirão de trabalhar juntos pelo futuro do Brasil. O ganhador devolverá o aceno. Agradecerá ao segundo colocado no discurso da vitória.

Numa das cenas antológicas de “Entreatos”, o documentário de João Moreira Salles que narra bastidores da campanha petista em 2002, ainda são nove e vinte da noite no domingo eleitoral quando Lula recebe a ligação do rival tucano. Ao desligar, vira-se para os companheiros: “Era o [José] Serra, reconhecendo que perdió. E que yo ganhei”. Respeito.

Salto para 2014. Três eleições depois, em um hotel de Brasília, Dilma Rousseff comemorou seu triunfo falando cinco vezes em disposição e compromisso com o “diálogo”. Foi a vitória mais apertada de todo o período pós- redemocratização. O perdedor, Aécio Neves, foi completamente ignorado no discurso de Dilma.

A ligação do derrotado e o agradecimento do ganhador não significam menos firmeza opositora, nem baixar a guarda para adversários. Demonstram apenas que a política não pode ser mais violenta que UFC. Após as eleições, o ringue está sempre aberto aos duelos. Só que dedo no olho, mordida na orelha e chute abaixo da cintura devem ser proibidos. Tudo tem limite.

Os professores Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, da Universidade de Harvard, ensinaram que as democracias morrem quando a tolerância mútua vira escasso no mercado político. “Diz respeito à ideia de que, enquanto nossos rivais jogarem pelas regras institucionais, nós aceitaremos que eles tenham direito igual de existir, competir pelo poder e governar. Podemos divergir, e não gostar deles nem um pouco, mas os vemos como legítimos.”

Completam: “Isso significa reconhecermos que os nossos rivais políticos são cidadãos decentes, cumpridores da lei, patriotas – que amam nosso país e respeitam a Constituição como nós. O que quer dizer que, mesmo acreditando que as suas ideias são idiotas, não as vemos como uma ameaça existencial. Tampouco os tratamos como subversivos, desqualificados ou traidores. Podemos derramar lágrimas na noite da eleição, quando o outro lado vence, mas não consideramos isso um acontecimento apocalíptico”.

Se essa noção de tolerância foi perdida, refletindo-se entre os colegas do escritório ou no almoço familiar de domingo, é sinal de que a polarização pode ameaçar a própria democracia.

Há cinco meses, o Carnegie Endowment for International Peace – um centro de estudos baseado em Washington e com ramificações em várias partes do mundo – lançou um texto que aborda justamente isso: o que ocorre com democracias quando elas se tornam “perniciosamente” polarizadas?

A publicação lista 16 casos (veja alguns no gráfico abaixo) em que sociedades polarizadas conseguiram se acertar e cicatrizar feridas. Na Colômbia (2009-2011), a corte eleitoral barrou tentativa de Gustavo Uribe de mudar a Constituição e buscar um terceiro mandato. Em 2006, no Timor Leste, uma ameaça de rebelião militar fez necessária a presença de forças estrangeiras e a renúncia do primeiro-ministro. O Brasil (1989-1993) é um dos citados, com a lembrança do impeachment de Fernando Collor, de estabilização da e eleição de Lula dez anos depois.

O texto do Carnegie enumera também diversos países que se (re)polarizaram e ainda estão fraturados: Argentina (a partir de 2013), o próprio Brasil (de 2013 em diante), EUA (desde 2015), México (2019 até hoje).

Da Índia à Turquia, da Hungria de Viktor Orbán à Polônia do Partido Lei e Justiça (PiS), a publicação argumenta que “níveis extraordinários de polarização têm se mostrado uma característica importante da onda em curso de declínio democrático”. Um ponto em comum é que seus líderes têm confiado, segundo o relatório, “em estratégias populistas e polarizadoras para ganhar e reter poder, semeando divisão a fim de energizar apoiadores, enquanto frequentemente reivindicam a necessidade de desafiar certos princípios democráticos, com o objetivo de superar a resistência de seus oponentes e impor sua agenda”.

Às vezes, jogar dentro das quatro linhas é seguir regras não escritas. É como na pelada: o jogo termina com dez minutos ou dois gols; quem ganha fica, quem perde cede o lugar; se ninguém quer pegar no gol, tem rodízio entre todo mundo. Para a bola e a democracia rolarem, é preciso acatar normas informais. Não há um roteiro para despolarizar, mas qualquer tentativa passa por um telefonema do derrotado e um agradecimento do vencedor. Quem estará de cada lado, nesse cessar-fogo, importa menos. (Valor Econômico – 01/06/2022)

Daniel Rittner é repórter especial em Brasília e escreve às quartas-feiras

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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