Alberto Aggio – Frente popular: o caso do Chile

Muito se tem falado e escrito nos dias que correm sobre a atualidade das frentes populares, em especial no Brasil nesses meses que antecedem as eleições presidenciais. Esse interesse vem se cristalizando, não apenas no Brasil, por conta da necessidade de se enfrentar os chamados regimes, governos ou tendências que hoje caracterizamos como iliberais, reconhecendo que alguns personagens a eles referidos apresentam vivíssimos traços fascistas. Evidentemente, não se trata de imaginar uma repetição do passado, contudo, a perspectiva de enfrentamento a essa situação tem suscitado a lembrança das Frentes Populares que tiveram vigência a partir de meados da década de 1930. A menção ao tipo de aliança política que comportava a estratégia política da frente popular nem sempre tem enfatizado a necessidade de compreender a sua história bem como suas vicissitudes. A ênfase recai, no mais das vezes, na intenção ou na necessidade premente de ultrapassar um governo marcado permanentemente por ameaças a democracia brasileira. Nesse sentido, refletir sobre a trajetória histórica da frente popular no Chile, único país latino-americano a vivenciar concreta e objetivamente uma política com essas características, torna-se importante para se perceber tanto a positividade quanto os desafios e limites que esse resgate pode implicar.

Em função da vitória do nazismo na Alemanha no início da década de 1930, a Internacional Comunista (IC), passou a adotar, a partir de agosto de 1935, uma nova orientação política: a estratégia da Frente Popular. Embora não tão conhecida, ao lado da França e da Espanha, o Chile conheceu a vitória eleitoral e o estabelecimento de um governo baseado na política de Frente Popular, em 1938. Para o movimento global do comunismo, essa estratégia significava a ultrapassagem da política anterior de “classe contra classe” que não tinha gerado nenhum ganho efetivo ao movimento. Para a IC, haveria a necessidade de se impulsionar a unidade de ação entre os comunistas e outras forças políticas com o intuito de se fazer frente, política e ideologicamente, ao fascismo e ao nazismo, então em ascensão na Europa ocidental. Ainda que a América Latina figurasse como absolutamente secundária frente aos propósitos da IC, Brasil e Chile, em virtude de suas posições estratégicas, em relação ao Atlântico e ao Pacífico, passaram a ser vistos como países importantes para que se estimulasse a nova linha política[1].

Apesar de cronologicamente posterior às experiências da França e da Espanha, as vicissitudes que deram origem a Frente Popular no Chile foram, de certa forma, similares. Tratava-se da necessidade de unidade político-social de setores populares para resistir ou impedir a instalação de um governo repressor. Da mesma maneira que na Europa, a Frente Popular articulou-se no Chile como uma aliança político-eleitoral que abrigava correntes político-ideológicas mais amplas do que o espectro formado pela esquerda de matriz marxista. Em oposição ao segundo governo de Arturo Alessandri (1932-1938), marcadamente autoritário e repressivo, a Frente Popular chilena foi composta essencialmente pelos partidos Radical, Socialista e Comunista, que assumiram, gradativamente, a defesa da democracia política como fundamento de uma coalizão de centro-esquerda, ainda que, à época, ela fosse caracterizada como um agrupamento genuinamente “esquerdista” por seus adversários.

Igualmente efêmeras, essas três experiências governativas de Frentes Populares foram historicamente decisivas em suas histórias nacionais, a despeito dos desfechos tão dispares que tiveram. A frente popular na Espanha redundou, como se sabe, no banho de sangue da guerra civil, iniciada em 1936, e, na França terminou, sumariamente, em função da falta de apoio parlamentar ao gabinete socialista de Léon Blum, em abril de 1938. No Chile, ao contrário da Espanha, não eclodiu a guerra civil. No entanto, a Frente Popular não conseguiu sustentar-se como aliança política passados os dois anos de sua chegada ao poder. Em 1941, ela seria irreparavelmente rompida. Mesmo assim, diferentemente da França, a ruptura da coalizão de centro-esquerda não significou, no Chile, o colapso do governo iniciado em 1938. Sustentado pelo presidencialismo da Carta Constitucional de 1925, o governo do presidente Pedro Aguirre Cerda (eleito em 1938 pela Frente Popular) prosseguiu mesmo após a ruptura da coalizão originária e seu mandato somente foi interrompido em virtude de sua morte, no mesmo ano em que se rompia a aliança dos partidos da Frente Popular.

Ainda que as alianças eleitorais e de governo posteriores a 1941 tenham sido mais amplas e variáveis do que a coalizão vitoriosa em 1938, a característica distintiva assumida pelo Chile está no fato de que a experiência da Frente Popular proporcionou ao país mais de uma década de governos sob sua inspiração, tendo sempre à testa um presidente vinculado ao Partido Radical. Depois da vitória de 1938 e da ruptura da Frente Popular em 1941, os Radicais venceram as duas eleições consecutivas para a Presidência da República. Na primeira, em 1942, com Juan Antonio Ríos encabeçando uma coalizão amplíssima, denominada “Aliança Democrática”. Na segunda, em 1946, Jorge González Videla foi o candidato da “União Nacional”, alcançando o poder com um forte e explícito apoio dos comunistas para em seguida colocá-los na ilegalidade, em 1947. Em ambas, como se nota, a consigna “Frente Popular” cedeu lugar, significativamente, a outras expressões. Depois de 1938, Videla foi o único presidente Radical do período que terminou seu mandato – Antonio Ríos, da mesma forma que Aguirre Cerda, morreu antes de concluí-lo. O desprestígio do Partido Radical como força política governante e as divisões no seio da esquerda no início da década de 1950 possibilitaram a eleição presidencial do ex-ditador Carlos Ibáñez del Campo, em 1952[2].

A Frente Popular e o Radicalismo, seguindo a dinâmica do processo de modernização iniciado na década de 1920, assentaram e implementaram profunda e sistematicamente, mas sem assumir uma feição revolucionária, políticas que possibilitaram a alteração da fisionomia econômico-social do país, através da ação estatal. Se os quatorze anos que se seguiram à vitória eleitoral de 1938 não devem ser compreendidos, em sua integralidade, como um período articulado pela linha política da Frente Popular, tampouco podem ser vistos em descontinuidade com as forças políticas que assumiram o poder em 1938 ou como externo às mudanças que a partir daquele momento se processaram. Numa visão comparativa, não seria despropositado um paralelo entre os quatorze anos de predomínio Radical no Chile e o período em que Getúlio Vargas governou o Brasil, entre 1930 e 1945, ainda que as diferenças no que se refere à dimensão política sejam contundentes e expressivas. Entretanto, o que mais chama atenção, além do contexto cronológico, são os projetos econômicos que foram implementados, mesclando nacionalismo e integração internacional, tendo como base a sedução pelo “americanismo”[3], apesar de ambos os países manifestarem também à época uma adesão incontestável aos fundamentos organicistas de matriz fortemente europeia.

No entanto, ao contrário do Brasil, a partir de 1938, a política conciliatória, flexível e pragmática do Partido Radical passou a ser o ponto de referência central na vida política do país, fortalecendo as convicções democráticas do republicanismo chileno. Isso acabou por gerar, a despeito das enormes divergências internas desde o estabelecimento da Frente Popular e dos conflitos latentes com as forças de direita, um clima de relativo consenso em torno de temas como a industrialização e a intervenção continuada do Estado na economia. À testa dos governos que se sucederam, o Partido Radical garantiu uma relativa estabilidade do sistema político e pautou-se pela conciliação, em quase todo o período a partir de 1938, em relação aos interesses das camadas subalternas, em especial as urbanas. Acomodando-se também às oscilações dos outros segmentos políticos, o Partido Radical pôde realizar, ao longo deste período (sobretudo depois de rompida a Frente Popular), alianças eleitorais e de governo de amplo espectro, ora encaminhando-se mais à esquerda, ora à direita, conforme os ditames da conjuntura. No geral, as alianças eleitorais lideradas pelos Radicais foram de centro-esquerda. Uma vez vitoriosos e no poder, os Radicais buscavam, e por vezes conseguiam, o apoio de frações dos Liberais, dos Conservadores e da Falange Nacional (futuro Partido Democrata-Cristão). Entre 1932 e 1952, os Radicais e os Conservadores nunca compuseram alianças eleitorais, ainda que tenham participado de algumas alianças de governo, no início e no final deste período.

Numa visão de conjunto do processo aberto em 1938, o consenso a que nos referimos anteriormente jogou um papel muito mais decisivo do que a natureza das coalizões levadas a efeito pelas políticas de esquerda ou aquelas do Radicalismo. Por esta razão, a ascensão ao poder da Frente Popular abriu um período na história do Chile que não correspondeu integral e precisamente aos anseios que expressavam (retoricamente ou não) suas bases de apoio e as representações políticas e sociais que lhe deram origem na conjuntura repressiva de 1936[4].

Neste sentido, pode-se dizer que o destino reservado aos atores políticos que operaram as mudanças empreendidas naquele período não corresponde à envergadura da tarefa realizada. Em relação à esquerda, ainda que as consequências da sua participação nos governos de coalizão tenham sido prontamente avaliadas como negativas – e esta visão será predominante no seio da esquerda chilena até a década de 1970 –, pode-se dizer que, em favor desta participação está o fato de que os partidos Comunista e Socialista não somente conseguiram assegurar o seu papel de representantes dos trabalhadores organizados, como também puderam aumentar suas bases e seu prestígio para, enfim, atuarem como forças proeminentes do processo político nacional, em condições de igualdade com os demais partidos. Isso é extremamente importante porque, além da experiência governativa, permitiu assegurar a autonomia política e organizativa das classes subalternas no processo de modernização que o país viveria a partir deste período.

Por outro lado, levando-se em conta que uma das bases do seu programa era o nacionalismo, podemos dizer que, no plano da economia, a esquerda foi incapaz de influenciar no sentido de se promover o desenvolvimento econômico e, ao mesmo tempo, diminuir a vulnerabilidade e a dependência do país em relação ao exterior. No plano da cidadania, verificou-se a impossibilidade de se ampliar o eleitorado nacional e de se conseguir estender o processo de sindicalização ao campo. A ascensão ao poder das forças que se articularam na Frente Popular não levou a um processo de democratização, via ampliação do eleitorado. No final da década de 1940, o percentual de votantes em relação à população era menor do que ao término da década anterior e se comparamos as eleições presidenciais de 1932 e de 1946 verificamos que o crescimento da participação eleitoral foi insignificante: de 7,6% para 8,5%[5].

Este conjunto de resultados não se encontra fora do âmbito explicativo. Em primeiro lugar, é verdadeiro que a correlação de forças não era inteiramente favorável à esquerda e que a direita (Conservadores e Liberais, fundamentalmente), em maioria no Parlamento por quase todo o tempo, conseguiu bloquear a implementação de medidas voltadas para os objetivos democratizantes que constavam do programa da Frente Popular de 1938. Além disso, em diversas oportunidades, a direita demonstrou claramente aos Radicais que seus interesses teriam preferência até mesmo sobre a manutenção da democracia representativa. A direita combinou assim a sua força eleitoral com o seu poderio econômico: vetou tudo o que afetava seus interesses imediatos, especialmente a sindicalização camponesa, e permitiu as mudanças que expressavam os interesses das organizações empresariais, acomodando seus potenciais conflitos internos.

Neste sentido, operando a situação política para permanecer sempre com o controle da presidência da República, a disposição do Partido Radical em ceder às pressões da direita seguiu à lógica de afirmação histórica deste partido. Nela, o tema da ordem assumia importância equivalente ao da mudança. A afirmação das representações da esquerda, em função da estabilização democrática do sistema político, empurrou o Radicalismo para o centro. Nessa posição, os Radicais tinham tudo a oferecer aos dois lados do espectro político, desde que estes o brindassem, conforme as circunstâncias, com o posto maior da República e/ou com o apoio ao futuro governo. A leitura que os Radicais fizeram desta situação definiu com maior precisão o seu papel político. A partir dai, a combinação mais eficaz para dar andamento à modernização e garantir a estabilidade estava na sua própria razão de ser como ator político.

A trajetória histórica da Frente Popular no Chile chama atenção para inúmeras dimensões, especialmente para o conflito político, as representações da esquerda bem como para a estabilização de um sistema político democrático e pluralista. Seria importante atentar também para a difícil e complicada relação entre a proposição de origem, enfaticamente democratizadora, e os resultados alcançados que limitaram esse avanço, embora não o tenham suprimido integralmente. Contudo, comparada com França – onde sobreveio a invasão do nazismo – e com a Espanha – que imergiu numa guerra civil sangrenta –, a Frente Popular no Chile conseguiu realizar uma façanha histórica, especialmente se pensarmos no contexto latino-americano da época: conciliar democracia política e modernização econômico-social, mesmo com todas as limitações que se evidenciaram no percurso de quatorze anos. (Estado da Arte – 30/06/2022; https://estadodaarte.estadao.com.br/frente-popular-chile-aggio/)

Alberto Aggio, professor titular de História da UNESP (Universidade Estadual Paulista) de Franca-SP

[1] Não é nosso propósito discutir aqui a Aliança Nacional Libertadora como expressão da Frente Popular no Brasil. Sobre isso ver Del Roio, Marcos. A Classe Operária na Revolução Burguesa – a política de alianças do PCB: 1928-1935, Belo Horizonte:Oficina de Livros, 1990; Pinheiro, Paulo Sérgio, Estratégias da Ilusão – A revolução mundial e o Brasil, 1922-1935, São Paulo:Cia. das Letras, 1992.

[2] Carlos Ibáñez del Campo governou ditatorialmente o Chile pela primeira vez entre 1927 e 1931. Eleito em 1952, concluiria seu mandato em 1958, com um retumbante fracasso e sem deixar herdeiros políticos.

[3] A expressão reporta-se ao modelo de modernização seguido pelos EUA. Procurava-se capturar desse modelo a alteração intensiva da produção material e seus fundamentos culturais, além das transformações operadas na esfera do consumo. As implicações políticas da adoção desse modelo foram extremamente díspares no contexto latino-americano. Ver VIANNA, Luiz Werneck. A Revolução Passiva – iberismo e americanismo no Brasil, Rio de Janeiro:Revan, 1997.

[4] Nesse ano, Alessandri reprime duramente o movimento sindical, em especial uma greve dos ferroviários, considerada por muitos historiadores como geradora da ideia de organização de uma Frente Popular no Chile.

[5] AYWIN, Mariana et.all., Chile en el Siglo XX, Santiago:Editorial Emision, 1986, p.187. O voto feminino foi outorgado em 1949, somente para eleições municipais; apenas em 1952, seria permitido nas eleições presidenciais.

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