Luiz Sérgio Henriques: A esquerda e a questão democrática

Vastas emoções e pensamentos imperfeitos certamente gostariam de nos conduzir para um cenário de duelo fatal entre direita e esquerda, ou entre o bem e o mal, na sucessão próxima, instalando um clima de roleta-russa e conflagrando ainda mais o País. Para tanto, teriam a seu favor a rarefação do centro político e a dificuldade de afirmação de um campo que se quer, por princípio, distante de polos extremos, seja lá o juízo que fizermos sobre a simetria, ou não, de tais polos.

Expulsa pela porta, a questão do centro costuma retornar pela janela, ainda mais num contexto desequilibrado por um governo de extrema-direita, com raso apreço pela institucionalidade. E retorna de variadas formas, traduzindo-se até de modo “filosófico”. O centro, como querem alguns, é menos “aristotélico” do que “hegeliano”, definindo-se antes como relação de forças em tensão do que como termo médio espacialmente definido. Nada muito distante do elo que políticos sagazes agarram e, a partir daí, controlam toda a corrente, por discernirem o problema decisivo de uma conjuntura. Ou, se quisermos, o centro desta mesma conjuntura.

O cerne das nossas atribulações é o perigo autoritário que põe em risco a convivência civil. Não se trata de perigo inédito na História recente. Sem nos alongarmos, há não mais do que uma ou duas gerações configurou-se, de fato, uma questão democrática de natureza que ao menos lembra a de agora. Tempos certamente mais sombrios, uma vez que a anarquia institucional, típica de todo regime de força, parecia requerer soluções radicais para sua superação: por exemplo, o voto nulo, a autodissolução do MDB e, consequentemente, a denúncia da via eleitoral.

Políticos de envergadura incomum, como Ulysses, Tancredo e Montoro, souberam interpretar o seu momento. Eram o “centro” em sentido estrito, com interlocução à esquerda, especialmente a que se reunia em torno do velho PCB, debilitado e clandestino, mas ainda influente. O fato de que efetivamente tinham nas mãos o elo mais forte da corrente se evidenciaria nas memoráveis eleições de 1974, reveladoras de que o ponto de equilíbrio da sociedade havia se deslocado positivamente. As eleições daquele ano valiam pelos números que traziam e pelas mudanças que expressavam. Por isso, prenunciavam outros acontecimentos auspiciosos, como a anistia e a Constituinte, e se firmavam como forma superior de luta, como é justo que seja na rotina das sociedades civilizadas.

A esquerda petista, hoje, está desafiada a repetir em sentido inverso o caminho trilhado pelos pais-fundadores do Brasil politicamente moderno. Nela, como sabemos, convivem elementos díspares que nem sempre se consegue decifrar com facilidade. Não há no código genético do partido informação que induza à ruptura institucional. Nem de longe o PT é um partido antissistema, como o foram os partidos comunistas ocidentais antes da progressiva incorporação de vários deles ao jogo político convencional. (Aliás, pode-se supor que, não fosse a proscrição de 1947, teria sido este o percurso do PCB, com grandes vantagens para a higidez do sistema partidário vigente até 1964. Sobre especulações desse tipo, porém, cabe ter a cautela de praxe.)

Estando o PT vocacionado a estratégias sociais reformistas, de que um programa bem-sucedido como o Bolsa Família é uma amostra, a retórica petista nem sempre acompanhou essa vocação. Em política, a linguagem conta, e muito. Ela nunca é inocente e contribui para moldar, em adeptos e militantes, a compreensão das coisas e o próprio comportamento. Nada mais nocivo, nesse sentido, do que a adoção de lemas equívocos, como o “nós contra eles”, “o povo contra as elites”, sinais da praga nacional-populista que corrói democracias liberais até mais consolidadas do que a nossa. Uma esquerda moderna digna do nome deveria combater a praga, desviando-se de tal léxico e assumindo seu posto na trincheira das democracias realmente existentes.

Rarefeito o centro, cumpre restaurá-lo a partir da esquerda, cujos partidos mais expressivos, como PT e PSB, têm uma função nacional a realizar, mais além dos seus interesses imediatos. A agregação de quadros e partidos moderados terá sentido estratégico, e não apenas simbólico. Uma agregação, de resto, que respeite a integridade dos aliados, sem a tentação de cooptá-los total ou parcialmente. Em contextos como o atual, a força dirigente precisa observar – conforme a lição clássica – uma altíssima consciência do próprio papel e, também, do papel dos aliados, de modo que mobilize articuladamente a capacidade de todos e solape o consenso dos extremistas, enfraquecendo-os como fator real de poder.

Sob vários aspectos, as tarefas aqui descritas foram equacionadas no árduo período da resistência capitaneada pelo MDB de Ulysses. Sob outros, pisamos em terreno novo e cheio de armadilhas, algumas das quais decorrentes de limites da própria esquerda. Desarmá-las, e pacificar o País, representará um feito histórico, com a inevitável ressalva de que, antes, como agora, não há margem para emoções desencontradas. (O Estado de São Paulo – 15/05/2022 https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,esquerda-e-questao-democratica,70004065296)

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