A América Latina nasceu com o advento da modernidade e sempre esteve vinculada à sua dinâmica histórica, suas crises e destino. É a experiência do “moderno” como um paradigma que nos faz pensar sobre nossas identidades e nossas relações com o mundo. Diversas formulações fizeram-nos cultivar a utopia de uma unidade latino-americana construída pelo antagonismo a um inimigo externo. Essa visão empobrecida e envelhecida não contempla as diversas experiências históricas do continente bem como o conjunto de problemas comuns determinados quer pelo desenvolvimento da formação econômica mundial, que dá sentido unitário a uma época, quer pelas diferenciações internas e conexões que se estabelecem em diversas dimensões da vida.
Esse debate intelectual é permanente, embora tenha estado mais vivo no momento da transição do autoritarismo para a democracia que abarcou a maioria dos países latino-americanos a partir da década de 1980. Hoje, imersos na complexidade da vida democrática, temos boas razões para retomá-lo. Isso coincidiu com o fim da URSS bem como da Guerra Fria. Buscar um caminho exclusivo tendo como perspectiva o “sul do mundo”, como foi praticado pelo chavismo e outras correntes similares, mostrou-se uma tentativa limitada e, por fim, pouco exitosa. É preciso continuar a pensar em termos globais.
Em comparação com aquele período, o cenário atual não é de otimismo e há fortes reminiscências. Condenada à “tradutibilidade” do que não lhe é original, a América Latina sempre foi pensada a partir de alguns modelos. O primeiro deles foi o europeu, visto como algo a ser atingido e, paradoxalmente, como responsável pelos históricos problemas que assolam a região. A partir do século XX, essa referência ganhou a companhia e a concorrência do paradigma norte-americano, que passou a cumprir até com maior rigor a sina de adesão calorosa e repugnante rechaço. Recentemente, o modelo oriental alcançou um inaudito prestígio. Com o deslocamento do eixo econômico para o Pacífico, a China passou a ser o novo Graal, sendo cotidianamente mobilizada como modelo diante dos dilemas de inserção competitiva enfrentados pelas economias latino-americanas.
Haveriam também formulações alternativas, autoproclamadas antagônicas ou de resistência. No coração delas assenta-se a ideia de uma “segunda independência” para o continente. Com maior ou menor profundidade, isso fez emergir um mosaico de nacionalismos, em geral, débeis e breves. A Revolução Cubana de 1959 avançou por esse sendero e seu regime tornou-se, na América Latina, o epicentro de um nebuloso projeto de ruptura com a modernidade.
Tal fabulação alimentou a reiteração de estratégias terceiro-mundistas de resultados cada vez menos auspiciosos e hoje francamente obsoletos diante de uma realidade marcada pela mundialização e por uma mudança tecnológica acelerada. O fracasso das guerrilhas inspiradas em Cuba, os pífios resultados econômicos, além de um autoritarismo cada vez mais abjeto, acabaram por ensejar a abertura de uma reflexão crítica sobre o regime cubano, até então identificado como o paradigma consagrado dessas perspectivas alternativas. Nesse novo cenário, o imaginário da revolução perdeu energia e vitalidade, mesmo na roupagem do bolivarianismo ou do “socialismo del buen vivir”.
Galvanizando enormes esperanças, o recente processo político chileno que se inicia em 2019 produziu a vitória da esquerda, com Gabriel Boric, e o estabelecimento de uma Convenção Constituinte, autônoma e paritária, que em breve apresentará ao país um novo texto constitucional para ir a plebiscito, em setembro. As noticias não são animadoras em relação à aprovação do novo texto. De qualquer forma, o Chile mostra-se, no conjunto da América Latina, como um ponto avançado, mas também limite, no processo de democratização latino-americano. Há muita expectativa, muita esperança, mas também muita crítica e até frustração frente ao percurso e aos resultados parciais já definidos pela Constituinte chilena.
De qualquer forma, a conquista da democracia, das liberdades e do pluralismo facultaram as condições para que os latino-americanos pudessem pensar em construir coletivamente o seu futuro. Na quadra em que estamos, trata-se de retomar o debate em novos termos, compreendendo a identidade latino-americana como uma construção em aberto, sustentada em diferenciações específicas e em cinco séculos de diálogo com o mundo. A recente experiência democrática torna-se assim o principal ativo da América Latina para que postule um lugar neste mundo que se transforma aceleradamente. Ela não pode perder esse ativo e não pode se deixar perder por visões anacrônicas, próprias ou externas, que não respondem mais à contemporaneidade e ao futuro. (Revista Política Democrática – Edição maio/2022 https://www.fundacaoastrojildo.org.br/revista-online-o-caminho-da-america-latina-e-a-democracia/)
Alberto Aggio, professor titular de História da UNESP (Universidade Estadual Paulista) de Franca-SP