Não será possível trazer ninguém do túmulo. Nem vítimas, nem torturadores, nem mesmo os confusos ministros do Superior Tribunal Militar (STM). Mas é possível reafirmar os fatos históricos que têm sido negados pelo presidente da República, pelo vice-presidente, pelo Ministério da Defesa em suas notas de comemoração da ditadura, pelos generais de pijama dos quais Jair Bolsonaro se cercou. A ironia desrespeitosa com que o general Hamilton Mourão reagiu ontem à pergunta sobre os áudios do STM confirma a relevância do trabalho dos historiadores, como Carlos Fico, de resgate destas vozes do passado.
As vozes mostravam que o Superior Tribunal Militar sabia das “torturas e sevícias mais requintadas”, como disse o general Rodrigo Octávio, ou do “cancro” que havia se formado dentro do aparelho de repressão, para usar a palavra do brigadeiro Julio de Sá Bierrenbach. O general Augusto Fragoso se disse “constrangido” quando ouvia falar de “Doi-Codi, Doi-Codi, Doi-Codi”.
Os generais, brigadeiros e almirantes, os juízes togados que se sentavam naquele tribunal durante a segunda metade dos anos 1970 estavam julgando os casos que haviam acontecido na primeira metade, exatamente os anos que se seguiram ao Ato Institucional número 5. Foi o pior momento. Quando a máquina de tortura, morte e ocultação de cadáveres estava no seu auge. Estava também no auge, naquele começo dos anos 1970, o crescimento econômico. O milagre foi excludente, concentrador, e precisou de repressão política brutal. Estranho milagre.
Os ministros entram em contradição. Tentam negar, para em seguida dizer “eles apanham mesmo”. O brigadeiro Faber Cintra diz que as lesões seriam facilmente constatadas em exames de corpo de delito, mesmo lendo casos em que os réus diziam ter ficado presos “em local ignorado”. Isso porque muitas vezes as prisões eram verdadeiros sequestros, como explicou o professor Carlos Fico. As pessoas eram mantidas em prisões prolongadas, em quartéis das Forças Armadas, no Dops, ou até nos aparelhos montados por oficiais das Forças Armadas, como foi a Casa da Morte, em Petrópolis, cuja existência Inês Etienne denunciou.
No raciocínio tortuoso do brigadeiro Deoclécio, perigoso era receber a denúncia, porque isso poderia “esmorecer o entusiasmo” da repressão. Para Bierrenbach, o seu próprio voto poderia ser usado para piorar a imagem do Brasil no exterior. Ele, pelo menos, disse: “paciência”. E o proferiu. No meio de elogios à mortífera Operação Bandeirante (Oban), ele acaba admitindo que “sádicos” torturavam pessoas sob a custódia do Estado.
O general Rodrigo Octávio é o mais incomodado com os relatos seguidos que chegavam ao tribunal. No primeiro dos áudios, em junho de 1977, ele narra os casos de prisioneiras grávidas torturadas. Por sua preocupação com as vítimas, ele foi punido pelo regime, que o impediu de assumir a presidência do STM, quando chegou a sua vez.
Os áudios que o professor Carlos Fico separou, das 10 mil horas gravadas das sessões, entre 1975 e 1985, revelam o que governo atual tenta esconder e negar. E, nesse ponto, as revelações passam a ser atuais. A democracia está em risco sob Bolsonaro. E isso se vê nas declarações de Bolsonaro, Mourão, seus filhos e seus generais aposentados. Eles louvam torturadores e negam a tortura. Elogiam a ditadura e dizem que ela nunca ocorreu. O presidente fala em liberdade, para aumentar o acesso dos seus seguidores às armas pesadas. O Exército aceitou abrir mão de vários dos controles que exercia sobre esse acesso indiscriminado às armas.
O general Mourão disse que tudo isso já passou e faz parte da História. Não é verdade. A história que se ensina nas escolas militares mente sobre esses fatos. A História é negada pelo governo. A nota do Exército, Marinha e Aeronáutica do último 31 de março mentiu sobre fatos históricos. Mourão diz “apurar o quê? Os caras já morreram tudo. Vai trazer os caras do túmulo de volta?” É impossível. Mas é possível contar quantos morreram na mão do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra que Mourão e Bolsonaro definem como herói. Com os fatos se pode dizer o que era Ustra. Um assassino que torturava pessoas desarmadas, sob a custódia do Estado. O governo mente sobre a História com um objetivo bem definido. A mentira serve ao propósito de minar a democracia. E é isso que as vozes do STM trazem do túmulo, no qual esse governo tenta enterrar a verdade. (Com Alvaro Gribel, de São Paulo/O Globo – 19/04/2022)