Editorial do Estadão: Inadimplência de alto a baixo

Nem adianta cobrar. Com dinheiro curto até para as contas do mês, multidões de consumidores têm sido incapazes de liquidar também as dívidas em atraso, tornando mais difícil, assim, a obtenção de novos créditos. Desde o primeiro surto de covid-19 o quadro tem piorado. Em 2019, antes da pandemia, 59,2% dos débitos de consumidores inadimplentes foram recuperados em até 60 dias depois da negativação. Em 2020, 57,2% dos atrasos foram corrigidos. No ano passado, os acertos ficaram em 54,5%. Foi o pior resultado da série histórica, iniciada em 2016. Os dados são da Serasa Experian, empresa especializada em informações financeiras. Também têm aumentado os débitos pendentes com bancos e administradoras de cartões.

Não se trata de uma onda de malandragem. Os consumidores brasileiros, especialmente os menos abonados, procuram pagar as contas em dia e ficar fora das listas de inadimplentes. Esse padrão tem sido confirmado por pesquisas. Mas pandemia, inflação, juros elevados e alto desemprego têm dificultado a liquidação de compromissos. Esses entraves têm impedido muita gente de tirar o nome do vermelho, comentou o economista Luiz Rabi, da Serasa Experian. Os consumidores inadimplentes foram 65,2 milhões em fevereiro deste ano – um número 5,8% maior que o de um ano antes.

A crise econômica prolongada tem poupado poucos brasileiros. Mesmo aqueles com os pagamentos em dia têm vivido momentos difíceis. A inadimplência aumentou em todas as grandes faixas de endividamento. A maior recuperação, 67,2%, foi a das dívidas superiores a R$ 10 mil. A menor foi a do grupo imediatamente inferior, no intervalo de R$ 2 mil a R$ 10 mil.

Em economias saudáveis e menos assoladas pela pobreza, o endividamento é um componente normal das finanças familiares e um importante suporte dos negócios. No Brasil, a dívida tende a ser, para milhões de famílias, um meio de sobrevivência. Incapazes de realizar de outra forma os gastos indispensáveis, dezenas de milhões de brasileiros acabam recorrendo ao crédito para garantir moradia, comida e outros bens e serviços essenciais. Nos últimos anos, nem esse mínimo tem sido alcançado por uma grande parcela da população.

Os mais afetados pela estagnação econômica e pelo desemprego são os mais pobres. Segundo levantamento da Tendências Consultoria, 3,7 milhões de pessoas, 26% dos desocupados, estão sem emprego há mais de dois anos. Trabalhadores das classes D e E, as mais pobres, são 81% do grupo há mais tempo sem ocupação.

Entre esses desocupados há pessoas com formação universitária e especialização profissional, como indicou reportagem do Estadão. Mas os desempregados de longo prazo são geralmente trabalhadores sem qualificação ou de qualificação muito modesta, pessoas já pobres antes do desemprego. A pouca renda conseguida em trabalhos eventuais nem sempre basta para as despesas essenciais. Quem consegue algum crédito para as compras indispensáveis enfrenta risco evidente de inadimplência.

Consequência do amplo e duradouro desarranjo da economia, o desemprego prolongado também é fator de enfraquecimento econômico. Trabalhadores desocupados por muito tempo ficam desatualizados e perdem capacidade produtiva. A curto prazo, são forçados a comprimir seus gastos, deixando de alimentar a demanda de bens e serviços. No Brasil, o quadro da crise inclui, além do desemprego e do baixo ritmo de atividade, a inflação acelerada, fator de erosão da renda familiar, e os juros altos, entraves ao consumo e à produção.

Sem planejamento, sem metas e sem rumo, o poder federal continua incapaz de proporcionar esperança de melhora significativa até o início do novo mandato presidencial. Além disso, todos os dados conhecidos indicam enormes desafios para quem assumir a Presidência em janeiro, se for alguém capaz de entender sua responsabilidade e seus problemas. Enquanto isso, a maior inadimplência continua sendo a do presidente Jair Bolsonaro, devedor das tarefas mais importantes de quem assume o posto mais alto da administração de um país. (O Estado de S. Paulo – 05/04/2022)

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