As regras fiscais não devem ser pró-cíclicas, isto é, permitir uma montanha de gastos, em período de crescimento do PIB e da arrecadação, e limitar a atuação do Estado em períodos de vacas magras. É preciso buscar, por assim dizer, duas diretrizes fundamentais: 1) a sustentabilidade da dívida-PIB como objetivo central; e 2) a garantia de algum poder discricionário pelos governos, desde que sujeito à diretriz anterior. A Constituição de 1988 e a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) são as bases para uma estratégia de endividamento civilizada a partir de 2023. O limite tendencial para a dívida, acoplado às metas de resultado primário e ao teto de gastos, é a receita de bolo para desatar o nó fiscal.
O procurador do Ministério Público de Contas no Tribunal de Contas da União (TCU), Rodrigo Medeiros de Lima, publicou recentemente o livro Regras fiscais e o controle quantitativo da dívida pública federal no Estado Democrático de Direito (Editora Blucher, 2021). O livro combina os conhecimentos do Direito Financeiro e das Finanças Públicas. No capítulo 3, o autor mostra como a construção do atual arcabouço fiscal, na Constituição federal de 1988, guiou-se pelo desejo de estabelecer mecanismos de controle, vigilância e transparência sobre o Executivo.
Essa dimensão explica muito sobre a tese do limite da dívida, já bastante presente em 1988. São vários os dispositivos, a exemplo do controle para as operações de crédito e para o próprio estoque da dívida consolidada (ou bruta, que inclui os títulos públicos). Houve, ainda, a preocupação de abranger Estados, municípios e União. O artigo 52 da Constituição determina as competências privativas do Senado, entre elas: “fixar, por proposta do presidente da República, limites globais para o montante da dívida consolidada da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios”.
O presidente Fernando Henrique Cardoso enviou Mensagem ao Senado, em 2001, que redundou numa resolução para fixar limites aos governos regionais. A outra, para a União, foi arquivada. Em 2015, o senador José Serra solicitou o desarquivamento e apresentou novo texto, talvez a tentativa mais promissora, mas também sem sucesso.
A meu ver, a ideia de um limite escrito na pedra deveria ser substituída por outra, mais moderna. A lei determinou que o presidente da República enviasse proposta para limitar a dívida consolidada e a dívida mobiliária federal (títulos públicos, artigo 48 da Constituição), no prazo de 90 dias da publicação da LRF (artigo 30). Um entrave sempre foi o Banco Central, como me relatou o saudoso jornalista Ribamar Oliveira pouco antes de falecer. Eis a preocupação, legítima, da autoridade monetária: o teto para a dívida acabaria prejudicando a gestão da liquidez do sistema monetário, feita com títulos emitidos pelo Tesouro (operações compromissadas).
A minha proposta é elaborar trajetórias para a dívida pública, a partir de cenários econômicos fidedignos, a cargo de técnicos do governo, do Congresso e da academia. A partir dos cenários, o governo escolheria a trajetória que, a seu ver, fosse adequada para um desejado quadro fiscal, econômico e social prospectivo, e enviaria uma nova Mensagem ao Senado para limitar a dívida consolidada (ou bruta), com base no artigo 52. Então, o Senado apreciaria a proposta, elaboraria a regra para a dívida pública, mas não por meio de um valor fixo, senão de um limite tendencial, em que haveria uma trajetória com bandas para cima e para baixo.
As metas de resultado primário seriam calculadas de modo a garantir a trajetória de dívida em quatro anos, mas, desde o primeiro ano da vigência da resolução do Senado, já haveria o compromisso de seguir a trajetória (com bandas) e, no caso de descumprimento, o ministro da Fazenda teria de se explicar ao Congresso, como faz o presidente do Banco Central quando a meta anual de inflação é rompida. Todas as vezes que o PIB crescesse abaixo de 1%, o governo estaria livre de cumprir o limite (com bandas) dado pela trajetória tendencial.
A resolução do Senado poderia ser revista de dois em dois anos, a partir de mensagem do presidente da República. Caso o limite fosse rompido, a partir do quarto ano de vigência da resolução – mesmo na presença desses mecanismos para garantir a flexibilidade, premissa básica recomendada pela literatura de regras fiscais –, então a União poderia sofrer sanções.
Finalmente, como mencionado na minha coluna de 15 de fevereiro passado, o teto de gastos seria fixado a partir da meta de resultado primário (condicionada ao cenário de dívida) e da projeção de receitas (feita de modo independente). A eventual sobra de arrecadação em relação às estimativas de receitas seria direcionada para pagamento de juros e dívida, em parte, para constituição de reserva para gastos futuros (em tempos de baixo crescimento econômico) e para gastos em investimentos.
A Emenda Constitucional n.º 109, de 2021, resvalou nessas ideias, mas nada se seguiu a isso. A verdade é que, desde 1988, já temos as bases para agir. Uma boa receita de bolo para 2023 é a que defendo aqui. (O Estado de S. Paulo – 29/03/2022)
FELIPE SALTO É DIRETOR EXECUTIVO DA IFI E RESPONSÁVEL POR SUA IMPLANTAÇÃO, COM MANDATO CONFERIDO PELO SENADO FEDERAL (2016-2022). AS OPINIÕES NÃO VINCULAM A INSTITUIÇÃO