Está na galeria Tate Modern, em Londres, a instalação British Library (Biblioteca Britânica), feita pelo nigeriano Yinka Shonibare. Trata-se de um salão com milhares de livros revestidos com tecidos estampados. Cada livro representa um imigrante ou filho de imigrante que contribuiu para a cultura inglesa, ou um pensador oposto à imigração.
Instalação é aquela parte da arte tão abstrata que mesmo o ex-diretor do Metropolitan Museum Thomas Hoving achou difícil definir, e que consiste (pela explicação dele) em preencher um salão com itens que evocam complexos e múltiplas associações, pensamentos, desejos, e humores. É como uma imensa pintura, escultura, poema ou prosa em três dimensões.
Shonibare quis celebrar a diversidade da população inglesa, e de fato ao passear pela biblioteca tem-se a sensação de estar num espaço complexo e vivo, as lombadas coloridas simbolizando diferentes pontos de vista, experiências e ideias. Mais que isso, o que o visitante sente é o prazer ocular, as cores fortes alimentam os olhos, e esse prazer passa a ideia de que a imigração é enriquecedora, e faz com a população o que as lombadas fizeram com os olhos.
Desde que vi a instalação não consigo pensar em diversidade sem associá-la à biblioteca conceitual. É o paradoxo desse tipo de arte: ao se permitir o devaneio ela consegue transmitir a mensagem com nitidez. Senti-me inclusive inclinada a me aventurar pela arte experimental, porque uma instalação nada mais é do que uma gigantesca figura de linguagem, com a pessoa dentro da metáfora ou sinestesia.
Eu escolheria replicar o último ano do governo Bolsonaro. E faria assim: os prédios da Esplanada dos Ministérios como retângulos revestidos por portas de banheiro público, vandalizadas e pichadas com piadas chulas e mensagens de ódio. O visitante passaria entre os retângulos rumo a um Congresso Nacional inexistente e visível por holograma. Em alto-falantes, o ruído constante de gente raivosa falando besteira. Num canto escuro uma pilha de jornais com as manchetes que importam, como essa: menino de 9 anos filho de líder rural é assassinado em Pernambuco.
Antes do pesadelo bolsonarista se impor no Brasil, Trump deixava americanos perplexos com sucessivos disparates. Era exaustivo acompanhar, e me lembro de entender a estratégia pela explicação de um jornalista: quando algo não vai bem, Trump grita — olha um esquilo! — e desvia a atenção do que interessa para um assunto banal. Bolsonaro faz o mesmo, e cercou-se de gente que nos apavora, como um presidente da Fundação Palmares que chama um negro linchado de vagabundo e um secretário da Cultura que discute projetos culturais com um lutador de jiu-jítsu. É um caso assustador de meta-polêmica, o governo não precisa criar distrações porque só precisa existir para distrair. Muita gente pendurando melancia no pescoço, e pedindo para que olhemos com horror.
A gente olha, e também se deixa levar por polêmicas que só beneficiam quem as cria, e se esquece de focar no que realmente importa, como o silêncio imposto ao líder rural Geovane Santos, do engenho Roncadorzinho em Pernambuco, que teve o filho de 9 anos assassinado por sete homens encapuzados e armados. É o silêncio imposto a Geovane e outros líderes (e que passa ao largo da acalorada discussão sobre liberdade de expressão), que vai definir as eleições de novembro e vai reeleger a bancada ruralista, num congresso que numa instalação artística, e na prática, permanecerá tão ilusório quanto um holograma.
Não sei onde fica Roncadorzinho. E provavelmente pouco saberei sobre o desenrolar do caso do menino assassinado. Mas isso sei: depois das eleições em novembro, quando nos assustarmos com a reeleição da bancada ruralista, e não nos reconhecermos num congresso-holograma, ele terá sido eleito porque muita atenção foi dada a ruído, e pouca para o que perpetua o sistema. (O Globo – 16/02/2022)