Luiz Carlos Azedo: Doria e Garcia, dois candidatos perdidos na Pauliceia desvairada

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE

Oh! Minhas alucinações!/ Como um possesso num acesso em meus aplausos/ aos heróis do meu Estado amado!../ E as esperanças de ver tudo salvo!/ Duas mil reformas, três projetos…/ Emigraram os futuros noturnos… E verde, verde, verde!…/ Oh! minhas alucinações!/ Mas os deputados, chapéus altos,/ mudavam-se pouco a pouco em cabras!/ Crescem-lhes os cornos, descem-lhes as barbinhas…/ E vi que os chapéus altos do meu estado amado,/ com os triângulos de madeira no pescoço,/ nos verdes esperanças, sob as franjas de oiro da tarde,/ se punham a pastar/ rente do palácio do senhor presidente…/ Oh! minhas alucinações!”

Os versos de Mário de Andrade, publicados em 1922, são considerados um marco modernista da literatura brasileira. Composto por 22 poemas, Pauliceia Desvairada tem como pano de fundo a acelerada modernização e a urbanização de São Paulo. Marcados pelo afeto e pelo sarcasmo, pela crítica ao transformismo dos políticos, traduzem a realidade de uma forma exagerada, alucinatória, que produz um novo olhar sobre a realidade, despido de fórmulas prontas e preconceitos. O moderno, a renovação, a experimentação pedem passagem, sem nenhuma ingenuidade.

Seu poema Ode ao Burguês foi lido durante a semana, no Teatro Municipal de São Paulo, para uma perplexa plateia aristocrática: “Eu insulto o burguês! O burguês-níquel, / o burguês-burguês! /A digestão bem-feita de São Paulo! / O homem-curva! O homem-nádegas! /O homem que, sendo francês, brasileiro, italiano, / é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!”. Era um manifesto e um aviso.

Calça apertada”; “Ken”, o namorado da Barbie; “coxinha”… Tão incômodos são os apelidos de João Doria que seus os marqueteiros resolveram assumir o risco de incorporá-los à imagem do pré-candidato à Presidência da República. Nas prévias do PSDB, produziram um antídoto: “Bom, enquanto eles procuravam apelidos pro Doria, o Doria procurava uma vacina pro Brasil. E o ‘coxinha’, ‘calça apertada’, atravessou o mundo para conseguir a única vacina que o Brasil teve no pior momento da pandemia. A vacina que salvou vidas de idosos, médicos e enfermeiros; de petistas e de bolsonaristas”. Doria venceu as prévias, mas até agora não levou.

Na política, São Paulo gosta de audácia, principalmente na capital, palco de viradas espetaculares, como a volta de Jânio Quadros, a vitória de Luiza Erundina, a eleição de Celso Pitta, a ascensão de Marta Suplicy. O governador João Doria é um fenômeno político meteórico, tipicamente paulista, eleito prefeito da capital; a partir dessa plataforma, alçou-se ao Palácio dos Bandeirantes. Agora, mira a Presidência.

Pesquisas

Pesquisa divulgada na sexta-feira pelo Instituto Ipespe mostra que Doria continua sem empolgar o eleitorado paulista, com 4% de intenções de votos nas pesquisas espontâneas e 5%, nas induzidas, muito atrás do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), com 34%, e de Jair Bolsonaro (PL), que tem 26%. Ensanduichado, também fica atrás do ex-ministro Sergio Moro (Podemos), com 11%, e em incômodo empate técnico com Ciro Gomes (PDT), que tem 7%. Por um mistério da autonomia da política, o governador João Doria faz uma excelente administração, cujo rigor fiscal, agora, lhe permite executar R$ 26 bilhões em investimentos e aumentar os salários do funcionalismo, porém, isso ainda não se traduz eleitoralmente.

Suas dificuldades no plano nacional eram esperadas: é paulista demais, tem zero quilômetro rodado no Congresso, não conhece a realidade dos demais estados etc. Entretanto, nada disso o impediu de vencer as prévias do PSDB, derrotando o governador gaúcho, Eduardo Leite. A vitória apertada tem um detalhe preocupante: perdeu a disputa entre vereadores, ou seja, a turma que capilariza a campanha e carrega o piano. Entretanto, talvez a chave de suas dificuldades não esteja no cenário nacional, mas, sim, no quadro eleitoral de São Paulo, que é muito difícil.

A filiação do vice-governador Rodrigo Garcia ao PSDB gerou duas fricções: uma com o DEM, que se fundiu ao PSL, formando a União Brasil, afastando-se de Doria; outra, a dissidência de Geraldo Alckmin, Aloysio Nunes Ferreira e José Aníbal, todos ultrapassados na fila de sua sucessão. O ambiente polarizado de uma disputa presencial antecipada e o cenário estadual criaram uma situação inédita em São Paulo: pela primeira vez, a expectativa de poder na largada da disputa eleitoral é muito maior no campo da oposição do que no Palácio dos Bandeirantes.

Na mesma pesquisa Ipespe, Garcia tem apenas 1% de votos na espontânea, num cenário no qual seus adversários mais fortes são Fernando Haddad, com 6%, o candidato de Lula; e Tarcísio Freitas, o ministro de Infraestrutura, um estreante, apoiado por Bolsonaro, tem 5%. Na consulta induzida, no melhor cenário, Garcia tem 10%, contra 38% de Haddad, e Tarcísio, com 25%. No cenário com Haddad (28%), França (18%), Boulos (11%) e Tarcísio (10%), Garcia tem apenas 5%. É ou não é uma Pauliceia desvairada? Entretanto, Doria e Garcia não estão espiritualmente derrotados. Ninguém ganha nem perde eleições de véspera.

Cidadania

A propósito, o Diretório Nacional do Cidadania aprovou ontem a federação com o PSDB. A maioria dos membros votou de forma favorável a aliança. O partido decidiu também de forma unânime pela manutenção do senador Alessandro Vieira (SE) como pré-candidato à presidência da República. Vieira foi responsável por coordenar o comitê de negociação sobre as federações e se absteve nos dois turnos. A maioria optou por fechar com o partido tucano, com 56 votos pela federação contra 47 do PDT e 7 abstenções. No primeiro turno, foram 54 votos pela federação com o PSDB, 37 com o PDT, 14 com o Podemos e 5 abstenções. (Correio Braziliense – 20/02/2022)

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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