Luiz Carlos Azedo: Nova “guerra fria” esquenta com escalada da crise ucraniana

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE

O grande herói do trabalho da antiga União Soviética nasceu na última noite de agosto de 1935, quando o mineiro Alexei Stakhanov extraiu 105 toneladas de carvão em seis horas de trabalho. A cota era de sete toneladas. A proeza do jovem operário da mina Irmino, na bacia carbonífera às margens do rio Donets, deu origem ao chamado “stakhanovismo”, um movimento de emulação entre trabalhadores com objetivo de aumentar a produtividade da economia.

Em pleno esforço de industrialização pesada da antiga Rússia e de coletivização forçada do campo (que daria origem à “grande fome” na Ucrânia), o movimento empolgou os mineiros da região e se estendeu a outros ramos da economia. A máquina de propaganda de Joseph Stálin alçou à categoria de heróis comunistas operários e agricultores que se destacaram por bater recordes de produção.

Por muito pouco, o presidente russo, Vladimir Putin, não exumou Stakhanov e Stálin, ontem, ao anunciar o reconhecimento da independência das duas regiões separatistas da Ucrânia — Donetsk, que projetou Alexei Stakhanov, e Luhansk —, como independentes. Em pronunciamento que pôs mais lenha na fogueira da crise ucraniana, Putin disse que Ucrânia moderna é uma invenção do líder comunista Vladimir Lênin, ao criar a União Soviética.

Com todas as letras, afirmou que as terras ancestrais do leste ucraniano são russas. “A Ucrânia é parte integrante da nossa história”, afirmou. É que a gênese da Rússia é o principado de Kiev, a atual capital da Ucrânia, desde que Vladimir, o Grande, que reinou de 980 a 1015, converteu o povo rus (uma controversa mistura de magiares, eslavos e vikings) ao cristianismo.

Putin também autorizou o envio de militares russos para “manter a paz” nas regiões separatistas da Ucrânia, em decreto assinado ontem. Donetsk e Luhansk são regiões que falam o russo e estão sob controle de rebeldes. Com apoio dos Estados Unidos e da Inglaterra, o governo ucraniano se preparava para retomar a soberania sobre essas áreas, ao mesmo tempo em que anunciava a intenção de ingressar na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).

A reação da Rússia foi deslocar aproximadamente 150 mil militares para a fronteira, com tanques, canhões, mísseis, helicópteros e caças. O clima de “guerra fria” que havia se instalado esquentou, a ponto de provocar comparações com a crise de 2008 com a Geórgia, que também havia manifestado a intenção de ingressar na Otan, o que provocou uma guerra quente que durou cinco dias. Com a decisão de ontem, Putin pagou para ver, depois de muitas negociações frustradas com os principais líderes europeus — mas, principalmente, com o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden.

Fórmula Kissinger

A retaliação imediata de Biden foi a aprovação de sanções econômicas às duas autoproclamadas repúblicas separatistas. A intervenção militar russa nas duas regiões, porém, é a antessala de uma guerra entre a Federação Russa e a Ucrânia, o que vai gerar uma crise sem precedentes na Europa. Putin vem reiterando que a Otan já avançou demais no Leste Europeu e que não vai permitir a entrada da Ucrânia no pacto militar do Ocidente.

Uma razão é geopolítica: a estratégia de defesa da Rússia depende da profundidade de seu território. Não existe nenhuma barreira física de difícil transposição na planície europeia, que se estende de Paris a Moscou. Esse foi o caminho de Napoleão e de Adolf Hitler para invadir a Rússia. Kiev está a menos de 900km de Moscou.

A outra, é econômica: a bacia do Dombass é uma das maiores províncias carboníferas do mundo, rica em carvão e gás natural. Na divisão internacional do trabalho, a Rússia tem uma vocação natural de produtor de energia para a Europa Central.

Tudo isso é de conhecimento de todos os países envolvidos na crise, principalmente os EUA e a Inglaterra, que encurralaram Putin, e a Alemanha e a França, que lideram a turma do deixa disso. O problema é que a Ucrânia é dividida desde os tempos de Pedro, o Grande, que expulsou os suecos da região em 1709. Uma parte é ortodoxa, outra é católica; uma fala russo, outra ucraniano; uma é aliada da Rússia, outra do Ocidente.

A fórmula de Henry Kissinger, o grande estrategista da diplomacia dos EUA na “guerra-fria”, seria os dois lados se unirem para barganhar com a Rússia e o Ocidente o que fosse melhor para o país, mantendo-se fora da Otan. Mas não é o que acontece. (Correio Braziliense – 22/02/2022)

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