Alberto Aggio: O que setembro nos revelou?

Dos meses do ano, agosto sempre foi, em termos políticos, o mais lembrado em razão de inúmeros acontecimentos, invariavelmente disruptivos, como foi o suicídio de Getúlio Vargas, em 1954. Setembro jamais havia ganho, na memória coletiva, tamanho protagonismo com o mesmo teor. Mas esse último mês de setembro foi bem diferente e mexeu com nossos nervos, fez palpitar corações e desafiou os mais competentes cérebros da análise política. O que setembro nos revelou?

Reconhecidamente, estivemos no limiar de uma grave ruptura institucional que poderia por à pique nossa jovem democracia. E o grande responsável por isso foi o presidente da República, Jair Bolsonaro, pela confrontação destrutiva que estimulou e conduziu contra as instituições da República, notadamente o Supremo Tribunal Federal (STF). Bolsonaro projetou e participou, no dia da Independência, de atos antidemocráticos de massa em Brasília e São Paulo com o claro objetivo de confrontar o Poder Judiciário, rompendo o equilibro da República. Se essa ação produzisse efeitos esperados a favor do presidente estaria dado o sinal para o golpe de Estado.

Mas não foi o que aconteceu. A tentativa de golpe não prosperou. Os militares recolheram-se, depois da cerimônia oficial em Brasília, e as Polícias Militares dos Estados, controladas pelos governadores, mantiveram-se em suas funções ordinárias, garantindo a ordem.

Detalhadamente preparados nas duas cidades mencionadas e também no Rio de Janeiro, Bolsonaro conseguiu mobilizar efetivamente milhares de pessoas. Obteve, nesse curso, o apoio de parte do empresariado e da militância das suas redes sociais. No entanto, as principais forças políticas do país não deram respaldo à escalada golpista comandada pelo presidente. Muito ao contrário, partidos políticos que relutavam em fazer oposição direta ao governo passaram a falar abertamente em impeachment. O principal setor social que havia declarado apoio, os caminhoneiros, se dividiu. Vocalizando uma retórica exaltada, parte dele ainda tentou uma “greve” nos dias sucessivos que foi desestimulada pelo próprio presidente da República.

O golpe fracassou, dentre outras razões, porque Bolsonaro não conseguiu adesão suficiente para levá-lo à efeito. Quer porque o suposto braço armado do dispositivo golpista recuou ou efetivamente não se compôs, quer porque a mobilização de massas não correspondeu às expectativas. Ficou a impressão de uma radicalização despropositada e irresponsável; e, por fim, de um recuo amedrontado diante da ameaça real de abertura do processo de impeachment.

De toda forma, o episódio revela que Bolsonaro não conseguiu ir além dos apoiadores de sempre e o recuo do presidente, com a Carta à Nação, deixou parte de seus apoiadores bastante insatisfeito. O resultado é cristalino: Bolsonaro não conseguiu ampliar sua base de sustentação e aumentou ainda mais seu isolamento político. Poucos dias depois, pesquisas de opinião sancionaram essa avaliação. A imensa maioria da população brasileira repudiou a iniciativa do presidente em se antagonizar abertamente com as instituições da República, quase levando a uma ruptura institucional.

Ainda que com equalização diversa em cada um dos atores, foi a sociedade política, em representação delegada da sociedade civil, que agiu de maneira célere e responsável para estancar o dispositivo golpista, antes, durante e especialmente depois do sete de setembro. Noticia a imprensa que, nos dias seguintes, produziu-se uma espécie de “concertação” entre atores representativos e diferenciados (STF e governadores, inclusos), mais militares de alta patente, todos preocupados em montar um dispositivo antigolpe capaz de atuar constitucionalmente contra Bolsonaro caso ele queira impedir a realização das eleições de 2022, não reconhecer os resultados ou tentar se antepor à posse do eleito em janeiro do ano seguinte[1]. Como se pode ver, a democracia brasileira aderiu oportunamente à campanha do “setembro amarelo”, mês dedicado ao combate ao suicídio.

“Mau soldado”, na definição do General Ernesto Geisel, setembro reiterou que Bolsonaro é péssimo articulador político e um presidente ainda pior. Se havia alguma inclinação analítica em compreender seu governo como “bonapartista”, o comportamento dos militares foi esclarecedor. Bolsonaro é um líder de espírito fascista incapaz de dar solidez e consequência ao seu próprio movimento. É um iliberal que tem adotado ações corrosivas contra a democracia desde o início do mandato por meio de estratégias erráticas de “guerra de movimento” e “guerra de posição” sucessivas e superpostas.

Setembro termina com a desastrosa viagem a Nova York na qual Bolsonaro e a delegação brasileira apenas exercitaram o antidecoro, mentiram e despreocupadamente espalharam o vírus da Covid-19 pelos salões das Nações Unidas. Por aqui, felizmente, as instituições da democracia parecem ter resistido à fronda reacionária comandada pelo presidente. Qualquer projeção positiva do nosso futuro vai depender de uma compreensão consequente do que se passou nesse setembro. (Publicado originalmente em Política Democrática Online, n. 36, Brasília: FAP, outubro de 2021, p. 9-11) e no blog Horizontes Democráticos https://horizontesdemocraticos.com.br/o-que-setembro-nos-revelou/)

Alberto Aggio, professor titular de História da UNESP (Universidade Estadual Paulista) de Franca-SP

[1] NOBLAT, Ricardo. “Operação antigolpe já foi deflagrada para conter Bolsonaro”. Metropole, 20.09.2021; https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/ricardo-noblat/operacao-antigolpe-ja-foi-deflagrada-para-conter-bolsonaro.

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