Marcus André Melo: Bolsonaro Contrafactual

E se não tivesse havido a pandemia nem o legado do clã presidencial com a justiça?

O que teria acontecido com Bolsonaro na ausência da pandemia e dos problemas judiciais do clã presidencial? Os efeitos são distintos, mas estão interligados. A crise sanitária representou, sim, um choque exógeno no sistema político, enquanto o legado de problemas da justiça estava escrito em pedra, embora marcado por incerteza e baixa visibilidade nacional.

A pandemia criou uma janela de atenção sobre o comportamento do presidente, revelando à nação, atônita, um presidente sem qualquer empatia ou liderança em uma calamidade social inédita. No curto prazo, Bolsonaro nem sequer usufruiu da onda de solidariedade aos governantes que a pandemia deflagrou na vasta maioria dos países.

A estratégia de jogar a culpa nos governadores e prefeitos malogrou. Bolsonaro tampouco ganhou o crédito pela vacinação célere que acabou acontecendo. A segunda onda teve impacto virulento, derrubando sua popularidade, mas o problema agora é menos sanitário que econômico.

A janela de atenção prolongou-se no tempo devido à CPI, que a magnificou, e reintroduziu o tema da corrupção na agenda.

Embora a pandemia tenha levado o auxílio emergencial aos grotões, reconfigurando a base social de apoio do presidente, o saldo político é francamente negativo. A expansão brutal do gasto encolheu o espaço fiscal, e a estagflação resultante —que não é um fenômeno brasileiro e aflige muitos países— combina-se agora com a crise energética em uma tempestade perfeita.

Em suma, na ausência da pandemia, Bolsonaro provavelmente teria navegado sem muita turbulência.

O exercício contrafactual pode estender-se também aos problemas do clã familiar com a justiça. Sem eles, não teria ocorrido o colapso da coalizão com os setores que apoiaram a Lava Jato, a saída de Moro, e o rapprochement com o centrão para a formação de um escudo legislativo. Enfim as placas tectônicas das relações Executivo-Legislativo não teriam se movido.

A escalada do conflito com o STF neste quadro representa menos um ataque à democracia por parte de um autocrata do que demonstração de força visando a sobrevivência do clã familiar. Mas Bolsonaro dá sinais de virar um pato manco: o conflito ameaça a aliança com o centrão na esteira de um possível efeito manada.

Sem os problemas na justiça, a principal tensão seria a convivência da Lava Jato com o centrão. A formação de uma base congressual visaria apenas a aprovação da agenda de governo —de menor importância dada a convergência programática em torno de reformas — e não um escudo legislativo.

A pandemia iluminou as ações do presidente no presente. O legado de malfeitos revelou o presidente no passado. A combinação foi explosiva. (Folha de S. Paulo – 20/09/2021)

Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA)

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