Luiz Sérgio Henriques: Do Terceiro Reich até nós

Há versos ou poemas inteiros que grudam na memória e, mudos, passam a nos desafiar para sempre, retornando em particular nos momentos agudos de crise. Entre tais lembranças, difícil deixar de incluir Inquisitorial, de um jovem e talentoso José Carlos Capinan de meados dos anos 1960, ainda no rescaldo da guerra e do vasto sentimento antifascista que ela havia desencadeado.

“O poeta não mente, dificulta” – dizia Capinan –, e a dificuldade que propunha retirava-nos qualquer conforto possível: uma coisa é zombar, levados pelo gênio de Chaplin, do ridículo do Terceiro Reich, mas, de fato, o que faríamos se vivêssemos naquele tempo e tivéssemos de encarar em primeira pessoa o que só depois se revelaria absurdo?

Lição de arte e de vida, sem dúvida. A lição, porém, não implica comparações imediatas, como seria o caso se aplicássemos automaticamente o rótulo infame – fascismo ou nazismo – aos modernos ou pósmodernos movimentos de corrosão da democracia liberal ou, mais apropriadamente, da democracia tout court. Mais adequado é observar o modo como tais movimentos contemporâneos, repropondo em novas bases a figura do homem providencial, buscam arregimentar o povo, ou a “sua” parte do povo, indispondo-a contra as instituições republicanas que garantem as liberdades individuais e os direitos humanos.

Por óbvio, aqui nos valemos da engenhosa fórmula, criada por Yascha Mounk, para descrever a ação dos novos homens fortes. Da Rússia de Putin à Venezuela de Chávez e Maduro, países e estruturas políticas variam e personalidades podem não ser decalques umas das outras, ainda que haja entre elas imitadores baratos. Contudo, há algo de inquietantemente regular nos procedimentos que, hoje, buscam dissociar democracia e liberalismo e instaurar o cerco populista aos mais variados “Capitólios”, inclusive o nosso.

Deixando de lado os fatores “estruturais” da grande transformação, que põem de pontacabeça as relações entre economia e sociedade, nação e mundo, as respostas regressivas apoiam-se sempre em pesados elementos ideológicos, no sentido mais negativo do termo.

Há quem tenha detectado, como os autores de um relatório da controvertida Rand Corporation (Paul & Matthews, The Russian ‘Firehouse of Falsehood’ Propaganda Model , de 2016), a matriz putiniana do emprego maciço e coordenado de meias-verdades e mentiras consumadas, criando uma realidade paralela a partir da qual milhões de pessoas interpretam a realidade, fazem escolhas e se orientam, ou desorientam, na vida real. Não há ideologia inocente e não deixa de ser curioso que, aceita a hipótese da origem putiniana, haverá algum resquício de tipo “soviético” nas técnicas manipulatórias que se disseminaram, com o Brexit e a eleição de Trump, nos países ocidentais mais emblemáticos.

O “jato de mentiras” que jorra da boca dos autocratas não é um simples meio de “desviar a atenção” de questões incômodas para o governante ou fazer com que a sociedade se distraia de outros assuntos mais cruciais. Tal efeito não está de modo algum excluído, muito ao contrário, mas nos interessa sublinhar que este tipo de violação da linguagem é que permite a imposição de estratégias para a extração do consenso ao menos passivo de expressivos contingentes da sociedade.

Um consenso ativo pressuporia, por parte das camadas dirigentes, recursos hegemônicos capazes de dinamizar a vida cívica, enriquecer as formas da política e incorporar forças e ideias divergentes e até antagônicas num contexto de liberdade e pluralismo. Mais democracia, portanto, e não menos. À falta de tais recursos, a direita populista e iliberal dos nossos dias, ao contrário do que queria o poeta, mente e dificulta, corrói as instituições e faz adoecer as palavras. Congênita a ela é a busca obsessiva e paranoica do inimigo geopolítico e dos seus agentes internos a serem aniquilados, numa imóvel guerra fria que se limita a substituir espantalhos: antes, a Rússia de 1917, agora a China de 1949.

A liberdade que a direita autocrática apregoa é internamente contraditória. Ela é, acima de tudo, a liberdade do indivíduo autarquicamente concebido, desembaraçado de vínculos e obrigações, e armado até os dentes para defender o que discricionariamente entende ser seus “direitos”. A contradição interna fica patente quando se observa que, para fazer valer a liberdade sem laços e os direitos sem contrapartida, torna-se necessária a implantação de um Estado baseado, primariamente, na força e, secundariamente, na fabricação artificial do consenso. Em resumo, na mentira, na distorção e na enfermidade de palavras e sentidos.

Elites políticas, de direita, centro ou esquerda, dirigentes econômicos e cidadãos comuns, como qualquer um de nós, quase podemos “tocar” na história que se desenrola à nossa frente, com seus fatos e personagens precários e bizarros. É verdade, não estamos em 1930 e os embriões de Hitler e Mussolini não passam disto: embriões. O Inquisitorial, no entanto, continua a incomodar e a tirar o fôlego: “Tu, ante o presente, / Como te defines ao que será passado?”. (O Estado de S. Paulo Paulo – 19/09/2021)

Luiz Sérgio Henriques, tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das Obras de Gramsci no Brasil

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