Editorial do Estadão: A inflação em super V

Em vez da recuperação em V prometida pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, os brasileiros estão vivendo uma inflação em super V, complemento sinistro de um desemprego muito acima dos padrões observados no mundo capitalista. Logo depois do choque inicial da pandemia, as famílias trataram de se isolar, o consumo despencou e os preços caíram. Em maio do ano passado a inflação mensal foi negativa (-0,38%) e a acumulada em 12 meses chegou a 1,88%, a menor taxa num período anual desde janeiro de 1999 (1,65%). A inversão foi rápida. Com a alta de 0,87% em agosto, a maior para o mês desde o ano 2000, os preços no varejo subiram 9,68% em 12 meses, numa reprodução, embora imperfeita, do final do período da presidente Dilma Rousseff. Os dados são do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).

Com o jogo perdido em 2021, resta ao Banco Central (BC) tentar conduzir a inflação do próximo ano à meta de 3,50% fixada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). Nem esse número é hoje levado a sério pelos economistas do setor financeiro e das principais consultorias. Em 2022 o IPCA deverá subir 3,98%, segundo a mediana das projeções captadas na pesquisa Focus divulgada na última segunda-feira. Para este ano a estimativa já bateu em 7,58%, um número muito acima da meta oficial (3,75%) e do limite superior de tolerância (5,25%). Mas ainda é possível, pelo menos em tese, evitar esse desastre.

O compromisso de conter a alta de preços no próximo ano foi reafirmado na quarta-feira pelo presidente do BC, Roberto Campos Neto. O BC, disse ele, tem autonomia e usará seus instrumentos com independência para defender o poder de compra do real. Poderia ter acrescentado: para proteger, tanto quanto possível, o poder de consumo já muito reduzido da maior parte das famílias, acuadas pelo desemprego, pelo dinheiro curto e por uma inflação muito alta acumulada neste ano e ao longo de 12 meses.

É preciso levar em conta, em qualquer discussão séria sobre a inflação, os problemas já acumulados. Nos 12 meses até agosto a eletricidade encareceu 21,08%. O preço dos combustíveis domésticos, incluído o gás, subiu 30,22%. O das carnes aumentou 30,77%. O grupo cereais, leguminosas e oleaginosas (com destaque para arroz e feijão) ficou 25,39% mais caro. Cada novo aumento, grande ou pequeno, ocorre sobre uma base já muito alta. Mesmo com inflação zero em setembro, uma fantasia aritmética, muitos milhões de famílias continuariam muito apertadas.

Mas é preciso perguntar por que o presidente do BC, ao reafirmar a promessa de combater a alta de preços, mencionou a autonomia da instituição e prometeu usar de “maneira independente” os instrumentos de política. A resposta é simples: se as pressões inflacionárias persistirem, poderá ser necessário um aperto maior, com novas altas de juros, piores condições de crédito e maiores entraves ao crescimento, mesmo com eleições em 2022.

O risco de um choque entre as ações anti-inflacionárias e a agenda eleitoral do presidente da República foi mencionado em entrevista à Agência Estado pelo economista Gustavo Loyola, ex-presidente do BC e diretor-presidente da Tendências Consultoria. Os dirigentes do BC têm hoje mandato fixo, lembrou Loyola, mas o presidente Bolsonaro, acrescentou, já desafia até o Supremo Tribunal Federal (STF). Além disso, lembrou, os dirigentes tinham mandato quando a instituição foi criada, mas isso durou até o presidente Arthur da Costa e Silva dizer “o guardião da moeda sou eu”.

Antes de conhecido o IPCA de agosto, economistas do mercado já haviam elevado de 7,50% para 7,63% a taxa básica de juros prevista para o fim deste ano. A taxa esperada para o fim de 2022 já chegou a 7,75%. Diante dos novos dados da inflação, já se mencionou no mercado a hipótese de novo aumento da taxa projetada. Enquanto isso, o presidente continua a cuidar de seus interesses pessoais e a ampliar a insegurança política e econômica, com efeitos imediatos na bolsa e no câmbio e danos duradouros à produção, ao emprego e ao sustento de milhões. (O Estado de S. Paulo – 10/09/2021)

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