O Brasil perdeu um cidadão íntegro, honesto, dedicado ao interesse público, conforme suas convicções; um brasileiro que, ao longo de toda a vida útil, foi político, sem tirar proveito pessoal, sempre fazendo do diálogo a ferramenta maior da sua atividade. Na carreira, conseguiu ser presidente da Câmara dos Deputados durante o regime militar, e vice-presidente da República no regime democrático.
Pode-se discordar de suas ideias e de que lado ele estava em cada momento do processo político eleitoral, mas não se pode acusá-lo de ter cedido aos métodos dos ditadores ou de quebrar o diálogo com os democratas. E é preciso reconhecer seu papel decisivo na reabertura democrática. Ainda estudante, Marco Antônio, como era conhecido em Pernambuco, fazia oposição às forças de esquerda que governavam o Brasil e o estado. Quando muitos se fizeram de esquerda para estar perto do poder, ele, ainda jovem, defendia e lutava por seu ideal liberal-cristão que alguns podiam chamar de direita.
Naquele tempo de Guerra Fria, o regime militar trouxe ideias liberais que ele defendia. Mas sua carreira foi feita graças aos votos dos pernambucanos em sintonia com propósitos ideológicos, que nunca significaram aceitação dos métodos de ditadura ou de ruptura do diálogo. Quando sentiu que chegou o momento fez a opção e, sem o seu apoio enfático, a democracia não teria derrotado a ditadura em 1985, com a eleição de Tancredo Neves. Nas dificuldades da transição, ele foi decisivo com sua lucidez e capacidade de articulação.
Foi um político em quem, mesmo aqueles em lados opostos, discordando de suas ideias, reconheciam as qualidades de caráter honesto, disposição ao diálogo e respeito aos adversários. Apesar de me opor a ele nos tempos universitários em Pernambuco, foi dele, já governador, que recebi a primeira oferta de emprego, quando soube que eu pretendia voltar ao Brasil, depois de nove anos no exterior. Na época, preferi voltar para lecionar na UnB, e anos depois foi ele, ministro da Educação, que me nomeou reitor, aceitando o resultado da eleição direta pela comunidade.
Na véspera de completar seus 200 anos de independência, o Brasil perdeu o político que primeiro chamou a atenção para celebrarmos essa data, debatendo entre nós como construir coesão e definir rumo para um país dividido e refém de si próprio. Foi ele quem lançou no Senado a ideia de promovermos festividades para comemorar os 200 anos do Brasil, em 2022. A grande homenagem a Marco Maciel seria usar seu exemplo de diálogo e compromisso com o país para encontrarmos um destino comum ao longo do terceiro centenário.
Sua vida política foi tentando construir o futuro, caminhando sobre o presente: sua prática política consistia em parlamentar hoje olhando para o amanhã. Os caminhos que ele defendia podiam ser diferentes dos que muitos de nós queríamos, mas seus propósitos eram uma nação onde nenhum brasileiro fosse condenado à pobreza; todo o povo tivesse acesso à educação e à saúde; o país progredisse com aumento da renda nacional e distribuição justa. Nossa maior homenagem seria construir uma unidade nacional para alcançar esses propósitos, graças às pontes entre as diversas visões ideológicas e diferentes forças políticas.
Por sentimento de história e da transcendência do país ao longo dos séculos, poucos teriam mais que ele a legitimidade para defender uma proposta com esse propósito. Além disso, Marco Maciel foi um político que sempre serviu ao país, de acordo com sua convicção, usando diálogo entre ideias e grupos políticos, mesmo quando essas pontes estavam quebradas, como durante o regime militar, ou como agora no impasse que vivemos.
Neste momento em que estamos prisioneiros de nossa divisão, amarrados no presente, sem perspectiva, descrentes da política, é hora de lembrar Marco Maciel e retomar o diálogo e a esperança; recuperar seu desafio para refletirmos e definirmos um rumo para o Terceiro Centenário do Brasil. O Senado Federal, onde ele desempenhou sua última função política; ou a Câmara dos Deputados, onde ele foi presidente, ou ambas casas conjuntamente, com o apoio da Academia Brasileira de Letras, onde ele foi imortal, poderiam homenageá-lo, criando a Comissão Marco Maciel, com pessoas de diversas tendências políticas, para refletir sobre caminhos e propósitos de unidade nacional, capazes de trazer coesão e rumo ao longo de nosso próximo centenário, com esperança e diálogo, duas características desse grande brasileiro que foi Marco Maciel. (Correio Braziliense – 15/06/2021)
Cristovam Buarque, professor emérito da UnB (Universidade de Brasília)