Ruth de Aquino: O que une a pastora Flordelis à família Bolsonaro

A pastora Flordelis tem vários pontos em comum com Flávio Bolsonaro, filho do presidente. Ambos são evangélicos, ambos se gabam de ter “uma família abençoada”, ambos são acusados de “rachadinhas” e enriquecimento obscuro, ambos são parlamentares, ela deputada federal e ele senador. E ambos têm foro privilegiado, imunidade e passaporte diplomático. Muita afinidade.

A grande diferença é a natureza dos problemas de cada um com a Justiça. Os de Flávio envolvem origem suspeita de seu dinheiro e um pendor para vender chocolates, além da longa e leal amizade com o ex-PM Fabrício Queiroz, um personagem que desestrutura o estado mental do presidente Jair Bolsonaro. Já Flordelis – chamada pela primeira-dama Michelle Bolsonaro de “amada irmã em Cristo” – acaba de ser indiciada por mandar matar o marido e pastor Anderson do Carmo com requintes de premeditação e crueldade.

Flordelis ganhou do governo Bolsonaro um passaporte diplomático com validade até 2023. É um direito de todos os congressistas. Uma farra sem igual. Como pode a pastora Flordelis ter um passaporte que, por definição, deveria ser concedido apenas a quem precisa representar o Brasil lá fora? O marido assassinado tinha um igual, coitado.

Quando Anderson levou 15 tiros na garagem de casa, atacado por encapuzados que não levaram nada, Flordelis criou a versão inverossímil de roubo seguido de morte. A polícia não acreditou. Mas Michelle Bolsonaro postou no Instagram mensagem de solidariedade a Flordelis, “mulher de fé que chora a precoce partida do pastor Anderson do Carmo”. Citou a Bíblia. Nas redes, a pastora divulgava fotos afetuosas com Flávio, Michelle e Jair.

A história da cantora gospel que fundou uma igreja com seu nome um dia vai virar filme e será difícil acreditar que era tudo verdade. Ela se diz inocente do crime, mas a polícia garante que a pastora foi a mandante intelectual, planejou tudo, e que tentou primeiro envenenar o marido seis vezes com arsênico. O motivo seria disputa de grana e poder, dentro e fora de casa. O promotor citou diálogo dela com um filho: “Fazer o quê? Separar dele não posso, porque senão ia escandalizar o nome de Deus”.

Cinco filhos e uma neta foram presos agora por envolvimento. Outros dois filhos estão presos desde o ano passado por comprar a arma e disparar. A investigação teve lances rocambolescos. O casal teria passado a última noite numa casa de swing. Uma ex-fiel disse que Anderson e Flordelis frequentavam a boate. Swing seguido de morte a tiros. Um enredo rodriguiano.

Flordelis foi eleita deputada com a bandeira de desburocratizar a adoção. Ela se considera mãe de 55 filhos, dos quais três biológicos, e outros adotados e “afetivos”. Há casos de crianças e adolescentes que sumiram do lar familiar e foram parar misteriosamente na casa dela. O Conselho Tutelar não investigou.

Flordelis é descrita por conhecidos e filhos como “sedutora, persuasiva, manipuladora” ou como “uma santidade”. Um rapaz que conseguiu sair da casa precisou fazer terapia para se desintoxicar da influência dela e de “rituais tenebrosos”, como cárcere privado sem comida. Há relatos de sexo entre os “parentes”. O próprio Anderson chegou como “filho adotivo”, namorou uma filha, terminou marido da pastora. Só mentes bem perturbadas explicam a opção por esse estilo de vida.

O que ninguém consegue explicar é que uma ré indiciada por um homicídio monstruoso desses continue solta. Como pode Flordelis gozar de imunidade parlamentar e foro privilegiado? No exercício do mandato, pela lei brasileira, Flordelis só pode ser presa em flagrante e por crime inafiançável. Esse não deveria ser um crime inafiançável? O Ministério Público pediu o afastamento de Flordelis da função de deputada federal. A juíza negou. E também rejeitou que a pastora seja monitorada por tornozeleira eletrônica. Flordelis só entregou os passaportes e está proibida de deixar o país sem autorização judicial. Que país é esse?

Quem pode responder é o presidente da Câmara Rodrigo Maia, que anda falando muito sobre tudo. A extinção do foro privilegiado para autoridades foi pedida por 700 mil assinaturas nas redes sociais. E agora, com o caso Flordelis, Maia recebeu ofício assinado por 26 senadores de 11 partidos, para discutir o fim do privilégio, a ser mantido apenas para presidentes da República, Câmara, Senado e Supremo Tribunal Federal. O debate está engavetado desde 2017 na Câmara. Não é de interesse público?

O maior interessado hoje na manutenção do foro privilegiado se chama Flávio Bolsonaro. Imagino como terminará esse episódio. E se haverá outras temporadas. (O Globo – 28/08/2020)

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