O debate sobre frentes e alianças, que compõe a rotina da política nos momentos de relativa calmaria, acende-se verdadeiramente nas situações em que se percebem ameaças existenciais à convivência civil e à natureza democrática dos Estados, como é evidente no caso brasileiro, e não só nele. Já existe, a propósito, um amplo inventário de exemplos clássicos que de certa forma nos assediam teimosamente quando buscamos parâmetros e termos de comparação. Examinemos um deles.
Weimar e a corrosão da sua república estiveram, há um século, no cerne da vaga reacionária que levaria ao nazismo. A cisão na esquerda – a partir dos anos 1920, dilacerada entre o “reformismo” social-democrata e o “revolucionarismo” bolchevique – abriria as portas para o nacional-socialismo. Do ponto de vista dos comunistas, os social-democratas não passavam de linha auxiliar da extrema-direita. Eram, pura e simplesmente, “social-fascistas”, ainda piores do que os adeptos declarados do nazismo.
A catástrofe que se evidenciaria depois produziu uma reviravolta na política de alianças. Desta vez, a precisa definição do adversário comum permitiu agregar em frentes populares não só os “irmãos inimigos”, socialistas e comunistas, como também uma ampla gama de liberais e democratas. Uma operação virtuosa, que levaria à extraordinária luta comum contra o nazifascismo. Mas, convenhamos, não tinha virtude alguma o fato de o comunismo no poder não se abrir aos ventos democratizantes advindos da frente, instalando assim a contradição grave: uma clarividente política de alianças “para fora”, uma repressão ensandecida “para dentro”, como nos processos de Moscou e demais crimes do comunismo stalinista.
Trata-se de situações paradigmáticas que, com nomes e circunstâncias diversas, se repetiriam para a esquerda ao longo do século. No Brasil dos anos 1930, a política de frente – a “aliança nacional libertadora” – abdicaria do seu traço inicial de mobilização popular para se perder numa aventura militar em tardio molde tenentista. Algumas décadas depois, o partido-motor da “aliança nacional” leria em outros termos a conjuntura de desafio existencial inerente ao regime militar. De fato, o então PCB, mesmo clandestino, contribuiria para a definição da resistência ao regime segundo o modelo da frente única ou, o que é aproximadamente a mesma coisa, da frente democrática.
A História nem sempre – ou quase nunca – segue rotas e traçados predefinidos. A frente ampla aos poucos tomaria corpo no MDB e na programática valorização da sociedade civil, mas seu propositor à esquerda estava limitado pela marca de nascença: a relação com a União Soviética e seu “socialismo de Estado”, em vias de esgotamento. Mesmo assim, aquela frente inaugurava um novo modo de proceder e de pensar a política, a ser recolhido e levado adiante pelos outros atores. Em palavras sintéticas, a política como hegemonia em ambiente plural e democrático; como capacidade de influenciar os demais e, também, deixar-se influenciar. Afinal, segundo a frase famosa, o educador – o partido que inova e transforma – também precisa ser educado.
A exigência a ser feita ao PT, eixo principal da esquerda pós-comunista e novamente protagonista das eleições de 2022, nasce exatamente deste conjunto de problemas. Pode bem ser que não baste uma frente unicamente de esquerda para ganhar em outubro e, com toda a certeza, ela não bastará para reconstruir o País a partir de janeiro, em caso de vitória. A extensão e a profundidade dos danos trazidos por quatro anos de governo Bolsonaro à economia e à sociedade – e à própria ideia de bem comum – ainda não estão sequer delimitadas, mas já se sabe que não são de pouca monta. Este quadro sombrio é o que nos adverte contra uma visão da realidade que oponha, num jogo de soma zero, esquerda e direita, como se não houvesse atores legítimos ao centro e mesmo à direita, com forte inserção, capacidade de formulação e agregação.
Impossível prever se a ampla convergência capaz de rodear com um cordão sanitário a direita “rupturista” se dará no primeiro ou no segundo turnos. Trata-se, aqui, de reivindicar que toda e qualquer ação se inspire na ideia de que, acima das rivalidades entre candidatos e partidos, existe a oposição básica entre democracia e autocracia, que está hoje por toda parte como a principal contradição política do nosso tempo. E, como sabemos, há também autocratas e populistas de esquerda, o que é uma advertência severa contra pretensões de monopólio da verdade. Aquela contradição é que permite riscar um campo comum, do qual só se autoexclui quem deliberadamente abandona a linguagem da política e adere à apologia das armas e, portanto, à linguagem da violência.
A República de Weimar – dizem – caiu porque era, no fundo, uma democracia sem democratas. Essa fragilidade, associada à imaturidade conflituosa das forças que deveriam defendê-la, foi a precondição da tragédia que se seguiu. Entre nós, a repetição de uma infeliz sequência deste tipo teria, talvez como nunca antes, todos os atributos da mais perigosa das chanchadas. (O Estado de São Paulo -19/06/2022; https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,a-esquerda-entre-a-historia-e-a-politica,70004095923)